Crônicas de um país sem sobrenome

Arquivo para outubro, 2013

Baderneiros: eles tem algo a dizer.

Eles estavam nas ruas conosco, naqueles momentos em que achávamos que estaríamos começando a mudar o Brasil. Eles também se vislumbraram com a ideia de um país mais democrático, mais acessível e mais igualitário, com mazelas clássicas se encaminhando para uma possível solução. Eles também levaram cartazes de causas que provavelmente não entendiam. E eles também presenciaram nosso silêncio egoísta, pós-reflexão sobre nossos próprios interesses. Assim como nós, eles tem pai, mãe, irmãos, trabalho, estudo, dificuldades cotidianas, medo, desânimo. Assim como nós, eles pagam seus impostos, mais do que podemos sentir. Assim como nós, os “baderneiros” são brasileiros, descontentes, esperançosos num idealizado futuro melhor. E hoje, são os novos inimigos públicos da nação…

O que leva um grupo reduzido de pessoas a, desde aquele nosso “junho estranho”, tal qual um super-herói às avessas ter uma vida comum durante o dia, e a noite transformar-se em paladinos mascarados de atitudes tão “teimosamente questionáveis”? Seriam os Black-Blocs brasileiros (como os mascarados se auto-intitulam, em referência ao famoso grupo anarquista europeu) tão diferentes de nós, brasileiros comuns transtornados, descrentes e conformados com a situação?

Brasileiros.

Brasileiros.

Acho importante colocar aqui, caro leitor, que eu não tenho um julgamento pré-formado sobre a validade ou não de um protesto feito com depredação. Antes que me acusem também de “baderneiro” por fazer este texto (não duvido, não duvido), ressalto também não ter ligação alguma com nenhum desses blocos ideológicos. Aliás, tirando a desconfiança de alguns poucos amigos, sequer conheço alguém que seja assumidamente um Black Bloc. Mas vejo que há a necessidade de se questionar, no meio de tantas notícias veiculadas pela mídia (em alguns casos absolutamente dependentes do sensacionalismo de direita, é verdade) com incontáveis menções às palavras “vândalos”, “baderna” e afins, por que apesar de tanto alarde negativo os manifestantes mascarados persistem, e parecem ser cada vez mais numerosos. Eles querem simbolizar alguma coisa. Eles querem dizer algo. Para o governo, sim, mas também para a gente.

Me parece, a princípio, uma conta simples, amigo. Se em junho fomos às ruas e fizemos barulho o suficiente para que algumas mudanças fossem sentidas (sim, houveram algumas vitórias, como o não-aumento da tarifa e o Mais Médicos), e agora voltamos para nosso conformismo em casa, sobra aos que querem manter o espírito de junho vivo fazer mais barulho nas ruas do que faziam antes. De certa forma, passamos a eles, os Black Blocs, a obrigação de “cobrir” o ruído que fizemos. Um pouco de bagunça é mesmo um mal necessário: lembremos que foi fechando ruas e tumultuando a “ordem” que as poucas conquistas foram conseguidas. Aquele lance de “manifeste-se sem atrapalhar ninguém” amplamente difundido na boca do povão indignado com o fechamento de ruas e rodovias tem seu contra-ponto: se ninguém está sendo atrapalhado, quem ouve?

Isso é um protesto. Lindo, louvável, altruísta. Mas que governo atenderia essa reivindicação?

Isso é um protesto. Lindo, louvável, altruísta, mas que governo atenderia essa reivindicação???

A questão é: o que queremos? Um Brasil que continue das mesmas formas que estamos acostumados desde muito tempo, ou algo mudado, com maior poder popular? Ressalta-se, me parece que é apenas “badernando” que a segunda opção é possível, e talvez esse “espírito” ainda exista somente pela atuação dos arruaceiros…

Duvida? Vamos analisar rapidamente como a grande mídia cobre as manifestações de agora, pós-junho insano. Se você já prestou atenção, caro leitor, certamente viu o seguinte esquema (deve estar em post-its na mesa de todo jornalista desses grandes veículos, só pode…)

Monte aqui sua manchete

Monte aqui sua manchete

Só lá pelo meio da reportagem é que, rapidamente, o locutor ou repórter menciona qual era a causa da tal “manifestação pacífica” – e rapidamente passa o microfone para o governador, ou algum fardado de patente “X” dizendo qual o plano de ação para o combate aos inimigos públicos. Opcional: ao fim, o âncora faz algum comentário reprovador do comportamento dos mascarados. Se você acompanha o noticiário com frequência, deve ter a impressão que os manifestos andam gradativamente voltando, certo? Errado: eles sempre continuaram (com menos gente, é verdade, mas quase todas as noites há uma passeata por aí), só que sem destaque na mídia. Destaque, aliás, que é conseguido apenas pela presença do Black Bloc. Percebe, caro leitor, que não se trata de “desvirtuar o assunto”, mas de “tornar-se novamente assunto”, mesmo com somente um ínfimo comentário no meio da reportagem? E é só por isso que você sabe, hoje, que as marchas continuam acontecendo, pelas mais diversas causas. Agora, a pergunta que não cala: que impressão teríamos sobre a “apatia política” da sociedade brasileira, caro amigo, sem o Black Bloc nas ruas garantindo os holofotes pra quem ainda não “foi pra casa”?

Talvez, no entanto, ainda esteja faltando compreender qual a causa dos caras, não é? Além é claro de dar apoio a outras causas (e ganhar apoio de causas externas, como os professores do RJ fizeram recentemente), é inegável que ainda existe toda aquela ideologia muito doida (e meio surreal pra muita gente, é verdade) do contra-capitalismo, do combate à relevância exacerbada do patrimônio e do anarquismo como libertação da opressão estatal e forma única de harmonia social. E se isso pode parecer-te, caro leitor, abstrato demais, dá pra entender direito quando tiramos o foco dos “baderneiros” e passamos a olhar os “contra-baderneiros”: a atuação estatal, personificada em decisões políticas públicas e na coerção policial autorizada (pero no mucho) pelos homens de gravata.

Truculência? Magiiina...

Truculência? Magiiina…

No começo das manifestações – e todos lembramos bem – a PM estava autorizada a usar balas de borracha. O problema delas, as balas de borracha, é que dificilmente atingiam o alvo correto. Agora, aos poucos cada governo estatal, que em teoria é quem dá o comando à PM, gradativamente está autorizando novamente o uso das borrachadas. Exatamente no momento em que, ao que parece, a “baderna” e a “depredação do patrimônio” está aumentando. Coincidência? A propósito, o manifestante (Black Bloc ou não) ainda tem sorte se o projétil for mesmo de borracha: pode não ser mais

A truculência policial, aliás, anda tomando proporções absurdamente desmedidas – coisa que a grande mídia, aquela das manchetes prontas, não anda mostrando por aí. Quase sempre, somos noticiados por videos amadores da internet (portanto, apenas quem tem internet vê), e no máximo uma nota oficial com os mesmos dizeres de sempre é veiculada no Jornal Nacional: “a PM informa que está apurando os fatos”. Foi o que disseram quando o Soldado Tiago Tiroteio apareceu para o Brasil, por exemplo. Essa semana, um motorista de ônibus foi brutalmente agredido por um policial aparentemente fissurado em UFC, que em vídeo se justifica apenas com um “ele relutou em mostrar sua CNH” (não acredita? Clique aqui e veja por si próprio). Tomou uma gravata, quase perdeu os sentidos. Se desse um tapinha no braço do PM, caracterizando assim o nocaute, provavelmente seria enquadrado por agressão e desacato. Claro, sem contar a incrível “cereja do bolo”, no melhor estilo “Pegadinha do Mallandro”:

Isso é um comportamento válido para uma corporação que simboliza o Estado, caro leitor? Longe de ser “olho por olho”, que é o que provavelmente você pode estar pensando agora: não há nenhum relato de manifestante ou transeunte que tenha sido agredido por um Black Bloc. Nenhum! Apenas o patrimônio fora degradado, o que aparentemente deve, na cabeça de um policial militar, justificar cenas como essa. Isso é “servir e proteger”, talvez… mas a pergunta não é proteger quem, ao que parece, é proteger o que (sem contar que, as vezes, esse “o que/quem” aí é bem estranho…). O patrimônio é degradado, e todos perdem a cabeça! Começa a fazer sentido, talvez, o que dizem os caras?

Se pensa que isso é “coisa de uma PM mal treinada”, e que isso não necessariamente simboliza a forma como o poder público enxerga suas prioridades, talvez você esteja ainda mais equivocado. Não é tão diferente da forma como o “dono da coleira dos pitbulls raivosos” enxerga toda a situação. Volte às manchetes que você está acostumado. Lá nos 75% da matéria, logo após mostrar o “patrimônio” (sempre ele) depredado, sempre vem os números: “(…) serão gastos tantos mil reais com uma resina especial para tirar a tinta do monumento”. Em seguida, uma imagem de funcionários da prefeitura já com um baldinho da tal “resina mágica e super-cara”, esfregando nervosamente a nova e controversa “arte sobre arte”…

Catapluft! Tome um baldinho de 12 mil reais

Catapluft! Tome aqui um baldinho de 12 mil reais

A próxima notícia do mesmo telejornal: “alunos da escola X na Zona Y da cidade estão sem merenda há duas semanas”. O mesmo governador se justifica, dizendo que é necessário tooooda uma burocracia, de licitações para contratação de uma empresa fornecedora de merenda escolar de qualidade, com leilão inverso, e que o processo realmente é demorado… um momento: a compra da “tinta mágica” não precisaria também passar pela contratação de uma empresa fornecedora? Essa licitação durou menos de 24 horas? “Caráter emergencial”, para que o patrimônio não fosse permanentemente atingido, dizem. E a fome dos estudantes, não é emergência? Hora de definir suas emergências, amigo governo! Hora de enxergarmos quais são elas – e discordarmos radicalmente delas, se for o caso!

Não, caro leitor. Novamente, reitero que não estou defendendo a depredação patrimonial, especialmente do patrimônio público. Também gosto de ver uma cidade limpa, bem cuidada: o inglês vê, mas eu também. Apenas defendo que está na hora, também, de enxergar a coisa toda por outros caminhos mais difíceis. Os Black Blocs, com suas atitudes “questionáveis”, estão aí pra nos mostrar quem de fato são seus inimigos – e você não precisa abraçar toda a ideologia anarquista ou concordar com “vandalismo” para, no mínimo concordar com ao menos um pouco do que eles estão apontando. Os baderneiros, gente como a gente com as nossas mesmas dificuldades cotidianas, estão nos chamando de volta pra rua – de onde talvez não deveríamos ter saído. Não são anjos, mas definitivamente nos mostram alguns demônios mais difíceis de serem vistos. E qual seria o exorcismo? Atendermos seu chamado? Votar conscientemente?

Comente aí, seja bem vindo! 🙂