Crônicas de um país sem sobrenome

A despedida

Muito tempo se passou desde a última vez em que desempoeirei esse espaço, para escrever qualquer coisa sobre o que penso a respeito do cenário político / social / econômico / et coetera brasileiro. Muitos, inclusive este que vos fala, já haviam se esquecido da existência desse modesto espaço de opinião. Mas algo dentro de mim ainda falava: “não acabou”. Precisava acabar de uma forma digna. Sabe quando a vida de um bichinho de estimação se esvai, você fica triste e abandona o corpo no matagal próximo de casa mas depois fica pensando que ele merecia um final mais cerimonioso? Pois bem, aproveitando-se da coincidência “feriado prolongado / aniversário do blog” (sim, hoje faz seis anos do meu – ainda xodó – primeiro texto), eis que a despedida que eu esperava chegou.

Nunca consegui dizer com clareza para as (poucas, porém maravilhosas) pessoas amigas que me perguntavam o que havia acontecido com esse blog, que em uma determinada época havia atingido crescimento de influência e acessos digno de sites de maior popularidade, e por que eu havia encerrado as atividades. Nunca houve uma forma sucinta e coerente para que eu expressasse o que sentia com relação ao meu já saudoso BdQ. De forma que sempre pensei nesse site como “algo a ser visto posteriormente”, mas como num relacionamento amoroso / afetivo que se desgasta com falta de manutenção e compromisso, até quando postergaria esse “vai ou racha” que agora estou rachando? Conversando recentemente com uma grande amiga, daquelas de mais de uma década de trocas e carinho, ela me incentivou a escrever as linhas que agora esboço. Pelo menos por enquanto, é o fim.

Não que você, caro leitor amigo que sei lá se ainda está por aqui, precisasse disso: a vida de absolutamente todos continuou relativamente igual depois da suspensão de novos textos, mas se me permite um momento egocêntrico, quem precisava disso era eu. Não sei mais se neste momento estou ainda escrevendo para alguém: o que sei é que estou aqui redigindo essas palavras ao menos para mim. Mas caso você leitor ainda exista por este antigo espaço, agradeço se quiser continuar a ler abaixo, para entender meus motivos. Permite? Pela última vez quer vir comigo? Em nome dos velhos tempos, pegue daí um café bem doce e acompanhe:

1-) A internet mudou. Nos finalmentes de 2010, quando lancei esse sitezinho, o auge da blogosfera ainda dava resquícios de existência. Ainda parava-se para ler, refletir, e no meu caso, escrever alguma coisa. Textões, grandes, gigantes, foram produzidos por gente muito boa – e não, não estou me incluindo nessa. O que temos hoje, ao contrário, é uma internet muito mais visual, mais voltada para produção de conteúdo (também muito bom, diga-se) em outras mídias, especialmente vídeos. Ninguém mais tem tempo e paciência para parar e ler algo de tantos caracteres e infinitas clicadas na barra de rolagem. Fato é que eu não me adaptei, não saberia produzir outro tipo de mídia que não fosse ainda meus textos. E não vi atrativo algum em apelar para um “pseudo-vintage” e tentar resistir bravamente com minhas incontáveis dedadas nas teclas do meu notebook. C’est la vie.

2-) Eu mudei. Este que vos fala, e que vos falou tantas vezes por aqui, caro leitor, como você pode conferir na minha bio, é um geógrafo e professor de geografia de – hoje – trinta e três anos. Quando abri este ainda tão querido espaço do BdQ, passava por um momento conturbado da vida em que tinha disposição e principalmente tempo para despejar dedadas no meu teclado. Nunca escondi de ninguém que o BdQ foi absolutamente importante pra minha vida por razões muito pessoais, numa época em que muita coisa dava errado e as horas acumuladas dentro de um quarto sem muitos propósitos na vida eram cada vez mais numerosas. Assim como acontece com todos – e que bom que é assim -, o destino me proporcionou mudanças drásticas: consegui um emprego que me toma um tempo considerável, mudei de uma cidade pequena para a maior metrópole brasileira sem abandonar minha docência em dois cursinhos preparatórios nas proximidades da minha vila de nascimento, e vi meu tempo e minha capacidade cerebral em refletir profundamente sobre um tema se esvair em poucos meses. Não que tenha me tornado um alienado às causas e questões sociais, mas o amigo leitor deve entender o ritual: para que antes eu produzisse um texto do tamanho padrão que estava habituado, eu estudava o tema pela internet por horas, em alguns casos dias, e o mesmo tempo era gasto posteriormente para esboçar as reflexões que apresentei. Simplesmente não me era mais possível, ao menos não com a assiduidade que prometi a mim mesmo uns anos atrás. Além disso, não raro eu gestava uma ideia que me parecia digna de ser despejada, quando antes mesmo de começar a redigir deparava-me com um texto idêntico ao que havia planejado, escrito pelas mão muito mais habilidosas de um Leonardo Sakamoto, um Gregório Duvivier, um Matheus Pichonelli, e tantos outros profissionais da escrita que, por prática e com incentivos financeiros maiores que os meus -além de uma maestria infinitamente superior à minha parca habilidade -, publicavam antes que eu a ideia outrora tida, com uma proeza que me seria impossível sequer chegar perto. Qualquer esboço então pareceria um plágio involuntário e de péssima qualidade, e o texto que havia gestado não veria a luz. E assim, vi os textos rareando, e rareando, até que abandonei por completo a prática de produzir conteúdo por aqui. Espero mesmo que me entenda.

3-) Eu mudei (2). O leitor desse site, aqueles que ainda existem, bem como meus amigos mais próximos, sabem que eu, Rafael, independente de quaisquer observações acerca de talento ou falta dele para tal, sou um cara que sempre gostou muito de escrever. Sempre tive mais afinidade com a escrita em muitos casos que com minha própria oralidade, minha capacidade de transmitir uma ideia ou um sentimento verbalmente. Escrever sempre me foi libertador. Exprimo sentimentos pela caixa de atualizações do facebook com mais facilidade do que conversando pessoalmente com alguém. Tenho um site secreto de poesias. Esse meu gosto não mudou, amigo: o que está diferente é meu maior apreço por outros tipos de escrita. Em parte pelos motivos que você poderá conferir adiante, hoje em dia tenho mais vontade de escrever sobre coisas diferentes, propostas diferentes de textos que certamente não se encaixariam na proposta original do BdQ. Que me desculpem os que insistem (os quais eu agradeço muito, de coração), mas eu sou apenas um cara na casa dos trinta anos e que posso me dar o direito semi-egoísta de querer mudar. Simplesmente acontece, e – fora do meu controle – foi o caso. Desculpas desde já pedidas a quem achar que merece um pedido de desculpas por isso.

4-) O Brasil mudou. De tudo o que usei até então como motivo para o encerramento deste espaço, esta é com certeza a parte que mais me dói. Quando pensei com amigos num bar e criei o BdQ, nos idos de 2010, vivíamos num Brasil que me era incômodo por motivos bem diferentes dos que me afligem hoje. Pertencíamos a uma sociedade apática, vazia de engajamento político, que via sucessivamente escândalos e mais escândalos na televisão sempre de uma forma irritantemente passiva, tão passiva como com relação aos problemas sociais que todo mundo conhece mas ninguém se dá ao trabalho de encarar de frente. E por muito tempo minha maior bandeira foi que nos espelhássemos nos irmãos que guerrearam contra um sistema ditatorial como o dos anos 80 e conseguiram derrubá-lo às custas de muito suor e sangue, para que pudéssemos exercer nossa democracia e nosso poder popular que, até então, viu apenas um lampejo manipulado quando do impeachment de Fernando Collor no começo dos anos 90, e só. Muitos dos nossos irmãos de guerrilha perderam muita coisa, e nosso silêncio ao que nos acontecia parecia-me absurdamente injusto. Até 2013, os vinte centavos, as bandeiras em marcha em trocentas cidades Brasil afora, os black blocks. Algo estava acontecendo. Lembro-me do texto que mais teve acessos e compartilhamentos deste blog, quando, emocionado, convoquei nossos irmãos a unirem-se aos manifestantes da rua. Este blog nunca havia feito tanto sentido: parecia-me que um país novo estava para nascer, e certamente a sociedade precisaria de material para refletir sobre o “Brasil Novo” que nasceria a partir dali. O país que eu veria um tempo depois, no entanto, passou longe do que eu sonhei: lá em Brasília tudo continua nos mais perfeitos moldes engessados do bipartidarismo, com a diferença que – sabe-se Deus como – arrastamos para fora do Planalto Central um maniqueísmo político torpe e patético que me dá um desgosto danado!! Ninguém mais reflete, pensa, lê um texto de olhos e peito aberto: quando lê (se lê), o faz procurando mínima e toscamente traços de um posicionamento partidário que, no meu caso, nunca existiu. Já na segunda linha o leitor moderno me acusa de “petralha”, “comunista”, “vai pra Cuba”, “mama na Lei Rouanet” (bem que eu gostaria), “doutrinador”, “vagabundo”. E se antes esse estranho tipo de ataque acontecia em textos em que defendia uma ou outra ação subversiva à ordem, com o tempo eles começaram a acontecer até em reflexões sobre posicionamentos que sempre me pareceram muito mais consensuais e clichés: eu sou vagabundo até quando defendo coisas absolutamente triviais como o respeito à Constituição!! Mesmo os ~do meu lado~: ao que parecia meus textos eram mais compartilhados do que realmente lidos, como uma espécie de “munição” contra ataques dos que pensavam de forma oposta – justo eu, que sempre defendi que usassem as caixas de comentários de cada produção minha justamente para que os opostos aparecessem, e civilizadamente debatessem: sempre foram e continuariam sendo muito bem recebidos. Fatalmente passei a me perguntar: ainda fazia sentido para mim tentar ajudar o leitor a pensar quando este se ilude, quando ele considera como sua principal função apenas identificar minhas afinidades de pensamento e me escrachar por isso, abortando qualquer tentativa de reflexão já no segundo parágrafo? Pra que gastaria um tempo que já não me abundava, com algo que me traria mais desgosto do que a alegria de saber que estaria ajudando alguém a formar pensamento crítico? Talvez você, caro amigo, tenha razão em julgar-me como precipitado, afobado, como “o cara que desistiu muito fácil”, mas este Brasil que se mostrou meses, anos depois daquele inesquecível junho de 2013 definitivamente não era o que eu sonhei. Não era o que eu queria. Minha vontade de escrever foi se esvaindo. E o terrível ano de 2016, que certamente ficará marcado na história como um dos mais sombrios que a sociedade brasileira jamais terá visto, só faz confirmar o que eu já sentia: vontade de desistir do BdQ. Um final melancólico, mas infelizmente mais real do que consegui expressar nessas linhas.

O zumbi do que um dia foi esse site ficará no ar, por três motivos: primeiramente Fora Temer ele não é feito por apenas duas mãos, mas por seis, e tenho amigos que, muito embora não se manifestam por aqui há mais tempo do que eu, tem o direito de ver que o espaço ainda existe se um dia eventualmente quiserem retomá-lo. Segundo, as estatísticas da plataforma WordPress apontam que alguns dos textos que já foram publicados neste site  ainda são frequentemente consultados – não sei os motivos, mas se estiver ainda ajudando alguém, não tem porque fechá-lo oficialmente. E terceiro, talvez o mais importante, acho que ainda me resta beeeeeeeem lá no fundo um fiozinho de esperança, de que um dia algo mude, na minha vida pessoal ou no país, e eu retome de alguma forma as atividades deste espacinho: teria preguiça de fazer tudo de novo, domínio, layout, biografia. Não sei quanto a vocês, seja lá quem for o “vocês” que ainda insisto em me referir neste derradeiro desabafo, mas eu me diverti bastante por aqui: espero que vocês também tenham gostado. Houveram momentos memoráveis, ao menos para mim. Sentirei saudades de tudo, e certamente levarei como bagagem e experiência pra trocar com seja lá quem queira trocá-la comigo um dia.

Caros leitores (pela última vez referindo-vos desse modo), tenham sempre uma vida linda e repleta de realizações e felicidades!! E que Deus (o meu, o seu, o de todo mundo mesmo que Ele seja apenas nós mesmos) olhe por esse nosso país maravilhoso, amém.

Grande, forte, ENORME ABRAÇO!!  🙂

É com satisfação que, mais uma vez, digo (volto a dizer) por aqui: boa noite, caro leitor! Andei sumido, é verdade: o último texto ainda é de antes do ano-novo. É quase um crime deixar um blog às traças como deixei: aclimatação a um novo ambiente, a um novo trabalho (cargo público, cargo estadual! Amém por isso!), a uma nova casa, a uma nova cidade! E não apenas uma cidade: é São Paulo, sonho de consumo deste humilde blogueiro desde criancinha! O menino da roça, ao que parece, finalmente chegou!

Pois soma-se essa nova vida, essa nova rotina, esse novo-tudo que ando passando, mais um certo desânimo em prosseguir com o blog (cada vez menos parece ter assunto), eu sumi. Peço, humildemente, seu mais sincero perdão, e proponho-nos um novo recomeço. Pois, sim, tive motivo: São Paulo, onde as coisas acontecem. E eu enfiei meu nariz nesse pique de “centro do mundo”, e claro, não pude perder (embora acho que perdi, como explicarei posteriormente) a primeira chance de circular por minha primeira passeata contra ela: a temida Copa do Mundo! Em formato diferente, talvez: esse blog privilegia o tom dissertativo em detrimento do relato, mas acho uma boa tentativa de reengreno… me permite? Posso voltar à absurda pretensão de produzir pseudo-análises sobre o Brasil?

Tudo começou quando, por facebook, a Vanessa Bárbara, a colunista mais odiada da Folha de São Paulo (mas nem de longe isso se reflete em sua qualidade, ao contrário) tascou em sua timeline que hoje haveria mais um Ato Não Vai Ter Copa, bem ali no vão do Masp (ou, na minha língua, “do ladinho do meu novo serviço”). E, é claro, aceitei o convite: caminhei após o expediente por uns cinco minutinhos, numa garoa daquelas danadas de fria, e me dirigi à até então pequena concentração no famoso vão livre do museu. E, ao que senti, ao dar o primeiro passo nos paralelepípedos daquele lugar, entrei em outra dimensão surreal – ao menos pra esse rapaz caipira aqui. Sim, caro leitor: sou maior de idade, moro agora longe da família e pago minhas contas, mas ainda há – e sempre haverá – um quê de interior dentro de mim, que me fez muito estranhar as coisas que presenciei (e que antes havia mais ou menos visto apenas pela TV).

De cara, avisto vários grupos devidamente agasalhados (sim, estava frio) e… mascarados. E o ato nem tinha começado. Eu, pé-vermelho que sou, arrepiei com a necessidade de, antes mesmo que o ato começasse, usar algo que tapasse o rosto dos manifestantes. Pra que? Qual era o receio? Vou além: é receio ou é cultura? Não entendi. E foi só o primeiro ponto que não entendi…

Estava sozinho, não tive com quem conversar – e não sou de se enturmar com completos estranhos logo de cara (ou, nesse caso, sem-cara). Mas eles se conheciam, por debaixo dos panos identificavam seus amigos, os abraçavam, gritavam seus nomes em direção ao encontro um do outro – e eu querendo saber como raios conhece-se alguém só com os olhos de fora… Queria ter encontrado a Vanessa, para ter com quem conversar e, claro, para agradecer pessoalmente o maior ápice que este blog já atingiu, ser citado uma vez na Folha de São Paulo, mas não tive como fazê-lo. Resolvi circular, estudar o terreno. Avisto vendedores de capa de chuva, amendoim, lanches naturais. Uma bela jovem pichando uma faixa amarela, a escrever os dizeres “Fifa Go Home” – no meio de um turbilhão de fotógrafos. De repente, os fotógrafos correm para um canto do vão livre: há uma aglomeração ali. Mascarados levantam cartazes: “não vai ter copa”. No meio da roda, uma fumaça: algo está queimando, aos gritos e urros dos sem-rosto. Vejo um pedaço de pano verde voando em brasas, e reconheço: era uma bandeira do Brasil. Eu, em minha opinião estritamente pessoal, repudio qualquer atentado à bandeira nacional – não por algum tratado militarista-ufanista-código criminal, mas por não partilhar desse sentimento: eu conheço, sim, vários problemas do meu país, mas ainda o amo. Sempre amarei minha pátria. Na minha modesta interpretação, queimar o símbolo da nação é como renegar a nação, e isso eu jamais farei….

Levanto os olhos mais um pouco: a turba já é significativamente maior que quando cheguei – deve ter durado uns 10 minutos no máximo esse intervalo. Avisto bandeiras vermelhas: partidos políticos. Bandeiras da causa homossexual. Um caixão de papelão, com dizeres que, na posição onde estava, não consegui ler. Cartazes frescos espalhados pelo chão (tinham algum dono?), armando uma roda no meio da, a essa altura do campeonato, já uma multidão. Pergunto a dois mascarados qual o itinerário da passeata (queria ter perguntado sobre a necessidade da máscara – faltou-me coragem), no que fui prontamente ignorado. Avisto outra bela moça, a única que, ao cruzar o olhar comigo, me encorajou a abordagem: ela também não sabia o que iria acontecer. Resolvi apenas ficar por ali…

Aos poucos, avisto: um policial, dois policiais. Uns dez metros adiante, dois mascarados a encará-los, fixamente, como se os conclamasse à provocação mútua. Súbita tensão abateu-me. Tentei ver se os policiais tinham identificação no colete: não consegui. Mas vi um deles com uma câmera acoplada ao colete – nem sabia que eles faziam isso. É verdade, diga-se, nada aconteceu enquanto estive ali. Mas senti na pele que a coisa poderia, sim, piorar muito – e isso numa manifestação que teria tudo pra ser “pacífica”, como a mídia que sempre me chegou à minha pitoresca Cajamar sempre disse. Fico ainda mais tenso ao ver, uns cinco metros de mim, dois fotógrafos e uma mocinha portando microfone vestindo um colete identificando-os como imprensa, além de um… capacete de ciclista! E não haviam bicicletas com eles por ali! O menino da roça que quer a todo custo abraçar SP sentiu um calafrio na espinha que há tempos não sentia! Cristo…capacetes???

Começam as batucadas. E merecem um capítulo a parte… uma verdadeira bateria, muito bem ensaiada e ritmada, entoa gritos de ordem de rimas relativamente simples – bem que a Vanessa orientou-me sobre a pobreza das rimas -, quase inaudíveis no meio de tanta percussão. Gritavam sobre a presença indesejável da Fifa, sobre “o enfermeiro que vale mais que o Neymar” (cantei a mesmíssima coisa em junho, mas era o professor o cara mais valioso), sobre o sonho do poder popular. Confesso que, na minha ingenuidade, não entendi muita coisa: em teoria, a democracia é o poder dos governantes, sim, mas legitimados pelo popular.

Estava amedrontado, confuso, com frio, fome e sozinho. Senti-me acuado. E logo em seguida fui embora, pois tremi de medo: dois mascarados, uns dois metros à minha direita, apontaram pra mim (!!!!), e seus olhos disseram não aprovar o que viam. Eu, um cara quieto, observando a multidão, de braços cruzados e dois metros de altura, e… com um bendito crachá do meu serviço pendurado à minha cintura! Foi quando me dei conta do enorme vacilo que cometi: o crachá identifica “Governo do Estado de São Paulo”! Não foi a toa que gerei desconfiança! Encarei a chuva já forte e, sem demoras, rumei-me ao metrô mais próximo: nessa concepção, misto de confusão mental com vacilo aparente com caipirice típica de quem acabou de chegar ao miolo da sociedade brasileira (São Paulo! Tudo acontece ali!), achei mais seguro correr pra casa!

Quais as lições de hoje, caro leitor? Muitas. Mesmo. Mesmo com essa “quase-experiência” frustrada por ingenuidade que tive no meu primeiro  Ato Contra a Copa. Para fins didáticos – leia-se, para não enrolar demais -, enumero-as:

1-) O espírito está vivo! Eu, até então morador do interior de SP, via as coisas ainda acontecendo apenas pela TV e pela mídia impressa, mas desde junho senti-me muito angustiado por perceber que aquela surrealidade do inverno de 2013 parecia ter morrido. Estar lá, mesmo que quase não estando, me fez perceber que sim, o brasileiro ainda não desaprendeu a reivindicar! E isso é lindo! Foi só por isso que eu paguei R$3,00 para voltar pra casa, e não R$3,20. Devo lembrar-me disso a cada vez que embarcar no metrô! Devo, acima de tudo, agradecer aos mascarados que, como vimos lá em 2013, mantiveram vivo esse pique fantástico das manifestações.

2-) Ainda falta um quê de propósito. A exemplo do que foi o ano passado. Ainda percebo aquele Fator Spoleto quando vejo uma manifestação contra a Copa com a pauta “saúde” (é contra a Copa ou a favor da saúde?). Quando vejo bandeiras de outras causas e partidos políticos em meio à turba – há que lembrar-se, os partidos eram abertamente rejeitados no Junho Insano…

3-) Mesmo nas manifestações chamadas “pacíficas”, o clima é sempre tenso. Muito mais tenso do que se imagina. É claro, isso é a interpretação de um novato metido à blogueiro descolado pela turba, mas é indiscutível que não havia “paz” (no sentido literal da palavra) no ar. Se por acaso resolver embarcar numa dessas algum dia, caro leitor, vá preparado. Vá sabendo disso. Amanhã eu confiro os veículos de mídia pra saber se eu estava ou não num lugar “pacífico”…

4-) Ainda há quem ache que a Copa não deve acontecer. Eu, particularmente, quero SIM que a Copa aconteça, acho de verdade que o tempo de manifestar-se contra a Copa ficou muito atrás, quando ainda éramos os apáticos brasileiros de 2010.  Agora, com todos os bilhões já desperdiçados e vidas que já se foram, que ao menos um tímido retorno seja sentido: é melhor um elefante branco que fora usado uma vez que um elefante branco sem nunca ter sido usado. Mas isso, claro, é apenas a minha opinião: sinta-se completamente a vontade para discordar de mim nos comentários, querido leitor! 😀

5-) São Paulo é difícil. Não é para os fracos. Enfiei-me num turbilhão de acontecimentos quando ainda nem sei em qual ponto desço quando pego o busão pra casa! Preciso esperar, pegar a manha, ter a malícia. Preciso aprender ainda a comer decentemente sem dar um rim na hora da conta, a saber descer no ponto certo sem ter que perguntar pra algum outro passageiro, a discernir que um cutucão involuntário na bolsa nem sempre é motivo pra se checar o zíper, a andar no metrô sem segurar nas barras (acho lindo, a primeira vez que vi isso quase sugeri ao sujeito que se inscrevesse no Se Vira Nos 30). Tenho mais medo da Paulicéia Desvairada do que imaginava. Acho que, no fundo, sempre serei um brasileiro, blogueiro, semi-politizado, mas indiscutivelmente caipira…

Todo trabalhador do terceiro setor sabe, caro leitor: lidar diretamente com o público é certamente uma experiência enriquecedora, e você sempre acaba se deparando com as coisas mais estranhas e – as vezes – divertidas. Se me permite, gostaria de começar relatando dois casos que há alguns anos me chamaram a atenção, da época em que eu, ainda adolescente quase entrando em fase adulta (não faz tanto tempo assim… tá?), trocava meu trabalho por dinheiro no balcão de uma video-locadora da minha terra natal.

Caso 1 – como poucos garotões de 20 anos sabem, o RedTube e o XVideos não são instituições que existem desde os tempos primórdios, e na época em que estive nesse trabalho (final da década de 90, começo dos anos 2000), os únicos “estímulos visuais para outros estímulos” eram disponíveis apenas em VHS (sim, sou da época da “multa por não rebobinar”). A locadora em que eu estava dispunha desses videos – arrisco dizer que eram responsáveis por quase 50% das locações diárias -, e não eram raros os casos em que a família ia à locadora e, escondido, o “pai” enfiava no meio das escolhas um desses “videos que a mãe não pode saber”… um dia, um menininho de uns 4 ou 5 anos me abordou e, perto do pai (sabidamente um “escondedor de fitas alternativas”), disse-me: “moço, você tem daquela fita que o homem pega a mulher e faz assim?” – por “assim”, entenda aquele típico gesto com as mãos cerradas e com o quadril que… ah, você sabe…

Caso 2 – os anos 90 eram bizarros, isso todo mundo sabe. Era a fase do É o Tchan e companhia estourando em tudo o que é lugar. Era a fase em que se deixasse, rolava um rala-rala na boquinha da garrafa até dentro de um velório – com ou sem o padre junto, tanto faz. E era a fase do shortinho e bustiê. Nada mais natural que a moda pegasse, num país tropical abençoado por Deus como o Brasil, e era engraçado como, por exemplo, embora fosse uma roupa que originalmente foi feita para exibir as curvas de uma garota (e esporadicamente do Jacaré), um bustiê e shortinho numa criança não fazia provocação alguma. Até o dia em que tive um choque de realidade: entra na video-locadora uma mãe, com sua filhinha de uns seis anos pelas mãos, que como várias menininhas que por ali passavam usava a combinação. No caso, um conjuntinho preto, com aquela clássica estampa dos olhos do Bad Boy, e escrito no espaço do bustiê onde no futuro provavelmente haveriam seios, em letras garrafais, de significado provavelmente desconhecido para a criança e para a própria mãe: “I´m a sex machine”

Faça dos casos relatados acima o que bem entender, caro leitor. Interprete-os como quiser: critique (ou não) esses pais a vontade por aí. Mas o fato é que existiu uma geração inteira, dos que hoje tem seus quase 30 anos, que cresceu entendendo que a sexualidade é algo constante e inerente à vida das pessoas. Ok, concordo, antes a coisa toda era mais declarada (que o diga as semanais sessões de colonoscopia que eram os ângulos e closes dos câmeras do Domingo Legal – que nem passava depois da meia noite).

O soft-porn da família brasileira

O soft-porn da família brasileira

Não que hoje a coisa seja diferente, em épocas de crianças e adolescentes 100% conectados e de falta de intervenção dos pais sob o conteúdo acessado pelos rebentos, os sites pornográficos são os novos Domingos Legais da criançada – muito mais explícitos, interativos e, potencialmente, prejudiciais. Mas hoje, caro leitor, não estamos aqui para discutir sobre pornografia e infância.

Cabe-nos perguntar para a discussão de hoje: isso tudo é necessariamente ruim? Já vimos anteriormente: a bunda brasileira é uma das maiores expressões nacionais mundo afora. Talvez as formas como se aprende sobre sexo hoje em dia sejam de fato nocivas, mas e quanto a essa inserção constante do sexo como algo corriqueiro e cotidiano do brasileiro? Ora, sexo é bom, é gostoso e saudável, faz bem pra pele e pras articulações e, se de forma consensual para as duas (três, quatro, cinco, ou apenas uma mesmo, whatever) partes, é sempre algo positivo e agregador na vida de cada um. O brasileiro é tradicionalmente visto como o povo mais sensual (e sexual) do mundo: amigos e mais amigos (e amigas também, diga-se) que se aventuram no exterior sempre voltam dizendo que, para “se dar bem” lá fora, não é raro que seja suficiente apenas dizer “I´m brazilian” – algum dia eu ainda faço isso. E, convenhamos, isso é algo que culturalmente sempre orgulhou muito nosso povo. Então, de onde vem o choque natural que temos ao ver coisas como o video abaixo?

Daí, mencionamos a criação do tal de Lulu. Originalmente um aplicativo para que as mulheres opinassem sobre os homens de forma anônima (e talvez por isso virou febre), entendendo “opinar” como “opinar sobre todas as características do sujeito”, mas que no final das contas resumiu-se a uma avaliação parcial do desempenho sexual do cara. Garanhões “eu como todas” em pânico, sem se tocar que, pra ter uma avaliação positiva no Lulu, basta não tratar as mulheres como “máquinas de masturbação sem as mãos”. Nós, brasileiros, fizemos do Lulu uma versão reduzida de si mesmo com caras de “cardápio do sexo”, e as usuárias, consultoras de boas trepadas. Longe de mim criticar as mulheres por isso, caro leitor: elas tem tanto direito de avaliar o comportamento sexual dos parceiros de forma aberta quanto todos os homens já o fazem, e é claro, é uma baita vingança contra a nova e repugnante moda do revenge-porn que vemos por aí. É quase um momento histórico, quando tenta-se inverter a relação “usuário-objeto” de uma sociedade tão patriarcal e machista quanto a nossa. São os sinais de que uma nova guerra dos sexos está se formando no país – e com ela, a elaboração de todo um novo “manual de conduta sexual” precisaria ser escrito. Justamente o país em que transar parece tão fácil, tão natural quanto dar “bom dia”…

Não é disso que estamos falando...

Não é disso que estamos falando.

Exagero? Nem tanto. Quando o assunto é sexo, nós os garanhões do planeta precisamos mesmo de um terapeuta sexual. E isso já é desde muito antes do Lulu. País do sexo fácil em que é natural andar mostrando o máximo possível em épocas de carnaval, e ao mesmo tempo o país mais cristão “castidade fidelidade contra-promiscuidade” do mundo. Não a toa, excetuando-se países em guerra civil ou situações similares que usam disso como “arma de guerra” ou qualquer aberração do tipo, lideramos com folga o ranking de país pacífico com mais casos de sexo não consentido (sim, estupro), única forma de sexo não saudável que pode (embora não deva JAMAIS) ser praticada.

Aprendemos a nos manifestar (pero no mucho, a gente sabe) em junho. E, claro, como tradicional “país da putaria” que somos, adoramos peitos a mostra – é bom lembrar que o Carnaval tá aí: na falta de uma fantasia adequada, apenas um band-aid tamanho família garante um tapa-sexo de qualidade. Mas misturar nudez e manifestação política, como as meninas do Femen Brazil fizeram há pouco tempo, aí é crime, é feio, é desnecessário, é pecado! E, falando em pecado, as cenas vistas pelo mundo quando da visita do Papa Francisco ao Brasil mostram que, visivelmente, temos problemas com nossa identidade sexual: brasileiros se masturbaram com crucifixos em praça pública, gerando debates e mais debates (sempre pouco produtivos) sobre a opressão que a religião cristã (marca indelével da nossa sociedade) causa na nossa sexualidade (outra marca tão indelével quanto). E é assim que se vê com tanta naturalidade, dentre outras coisas, pastor metrossexual de sexualidade duvidosa ganhando eleições (pois sim, ele nos representa) e tornando-se presidente de comissão de direitos humanos, pregando… homofobia! É no mínimo um caso de conflito pessoal, de não aceitação. Freud adoraria analisar-nos.

Ou o Padre Merrin, quem sabe.

E já que falamos de homofobia, é impossível não mencionar nossa terrível confusão mental quando resolvemos falar de formas de expressão sexual, digamos, “não cristãs convencionais” (mesmo que consensuais). Fato é que não fazemos a menor ideia se amamos ou odiamos nossos gays e lésbicas. Sabe aquele garotinho que fez pra mim o gesto de um filme pornô? Se ele de fato assiste esses filmes, cresceu vendo – e aprovando – duas garotas estimulando-se sexualmente. Isso, eu sei (pois é!), está em todo (repito: TO-DO) filme pornô que se preze – nossos professores do sexo, bom lembrar -, e os marmanjos adoram. A prática da homossexualidade não está necessariamente condenada na mentalidade do brasileiro (especialmente dos homens), mas por que de noite aplaudimos o lesbianismo explícito e de dia quebramos lâmpadas na cara de dois gays andando pela rua? Insegurança? Medo do “dominante” tornar-se o “dominado”? Pois se o argumento do típico macho-alfa é conhecer o funcionamento da mentalidade de outro homem (pensar em sexo 110% do tempo, pois é), seu repugno de gays demonstra nada menos que ele mesmo não sabe a diferença entre olhar libidinosamente e praticar atos não consentidos. Todo homofóbico seria, portanto, além de um inseguro da própria sexualidade (essa é clássica), um estuprador em potencial! Onde está seu Deus agora, macho-alfa?

Isso, claro, não tem a ver com os gays engraçados, que tanta gente acusa hoje na novela das oito como favorecedores da “ditadura gay” – o cara que inventou esse termo merece cadeia, pelo desserviço prestado. Damos risada com o Félix, demos risada com o Crô. Aliás, o Crô acabou de virar aposta de blockbuster nacional do ano! Nós gostamos de gays, e não é de hoje: o saudoso Jorge Lafond e a Vera-Verão que o digam. Desde que, claro, o Crô ou o Félix sejam estereótipos meramente comportamentais e sem qualquer expressão de sexualidade – não a toa, o Relatório Juventude e Sexualidade da UNESCO aponta que, no Brasil, um em cada dez (DEZ!!!) homens declarados heterossexuais são, na verdade, homo ou bissexuais enrustidos abdicando da plenitude de uma vida sexual feliz e saudável! Ah, evidentemente, é também importante que eles não sejam nossos filhos: filho nosso vê pornografia desde criança, aprende que aquilo sim é que é bom. O menino é condicionado a ser “machinho” ainda pequeno, nos mínimos estereótipos como até mesmo a prática de esportes – como já discutimos aqui. Até acredito que colocar uma roupa com dizeres eróticos em inglês seja algo “acidental” (embora o “sex” estampado seja algo meio linguisticamente universal), mas alguém duvida que, num país machista e homofóbico como o nosso, esfregar bocetas na cara de nossos filhos pequenos ainda seja uma artimanha de pais heteronormativos e que NÃO acontece “sem querer”?

Ok, então, como é que se desembola tudo isso? Eu, blogueiro, não sou terapeuta sexual nem nada parecido (e adoraria muito que surgisse o parecer de um profissional sobre os absurdos que escrevi aqui, ali embaixo no campo dos comentários), mas ainda acho que a primeira medida é – oh, novidade – a instrução pela educação. E não só no sentido escolar, aquela coisa de “dia de palestra sobre AIDS”: também a educação familiar, essa ideia de “filho, senta aqui, vamos conversar sobre sexo” mesmo! Educar sexualmente o filho não é simplesmente enfiar uma camisinha na carteira do guri, expô-lo ao sexo explícito e deixar o resto da tarefa com a TV e suas ideias erradas sobre a sexualidade humana – onde gordas são inúteis pra trepar, é normal foder em provadores de loja de roupas e gays insistem em gostar de comer mais mulheres que o Zé Mayer! O Relatório Juventude e Sexualidade da UNESCO mostrou: uma em cada três (TRÊS!!!) mulheres no Brasil não falam com suas filhas nem sobre menstruação! Um em cada dois (DOIS!!!) jovens homens brasileiros aprendem sobre sexo apenas na aula de biologia que disserta sobre a anatomia do sistema reprodutor – portanto isento de qualquer informação adicional sobre a expressão da sexua-LIDADE humana!

E pronto: toda informação necessária pra ser um adulto sexualmente saudável e feliz

E pronto: toda informação necessária pra ser um adulto sexualmente saudável e feliz

Claro, evidente, uma fórmula única não é suficiente para que todos nossos problemas de conduta sexual sejam resolvidos. Tão diferentes quanto a sexualidade de cada um são as opiniões de cada um sobre o assunto. Infelizmente, várias delas ainda carregadas de preconceitos, sexismos, “não-cristão-ortodoxo-fobias” e afins, mas infelizmente isso ainda é um direito. Tudo bem. Talvez – e principalmente – por isso, é importante que uma medida simples e prática, acessível a qualquer brasileiro comum, seja tomada com certa urgência: que tal se, ao menos, cada um começar a trabalhar na “revolução sexual do país do sexo” enfiando sua opinião apenas no seu próprio lulu?

Pois que toda boa história começa com “era uma vez”. E, na história ora contada, pelo menos hoje é “era”, e não “é”. Então, vamos nós: era uma vez uma ponte. Ponte é aquele negócio que serve pra ligar duas coisas. Nesse caso, ligava duas avenidas. Que ficavam numa cidade.

Não, isso ainda diz pouco. Há magnitude na história ora contada. Era uma vez, uma cidade: não qualquer cidade, mas a maior cidade do Brasil, São Paulo. Em São Paulo, todos sabem, há várias avenidas, inúmeras: era uma vez a Avenida do Estado, importante corredor de circulação da zona leste de São Paulo, e a Marginal Tietê. Só isso. A maior avenida, da maior cidade do país. Nove faixas em três vias. Pega-se a Marginal Tietê para ir à quase qualquer lugar de São Paulo. Circulam ali aproximadamente 900 mil veículos por dia. Por dia!

E, olhem só, isso ainda diz pouco: não estamos aqui falando de qualquer uma das 29438905 pontes da Marginal Tietê. A ponte em questão, caro leitor, é a Estaiadinha, ligação entre a Avenida do Estado e a tal gigante via de circulação, a ponte mais bonita de toda a “faraonicidade” da Marginal Tietê, e a segunda mais bonita de São Paulo (perde apenas pra sua irmã mais velha, a Estaiada, na Marginal Pinheiros, a qual já criamos polêmica por aqui). Feita para facilitar o trânsito sempre afogado da região. Feita também para ser vista, apreciada, admirada pelos incontáveis passantes da Marginal Tietê. Coisa linda de se ver: se você vai ao aeroporto (tem copa chegando, lembra?), cruza a Estaiadinha. Se vai para o Vale do Paraíba, passa pela Estaiadinha. Se está na Rodoviária do Tietê (que também falamos por aqui), dá de cara com a Estaiadinha.

E claro, se você é um leitor do BdQ de fora de São Paulo, ei-la: a Estaiadinha!

E claro, se você é um leitor do BdQ de fora de São Paulo, ei-la: a Estaiadinha!

A Estaiadinha é um enorme símbolo da modernidade que se tenta passar da cidade de São Paulo. Certamente será (seria?) uma das recordações visuais que os zilhares de turistas em visita à São Paulo na Copa levarão. Um Itaquerão bonito precisa de uma cidade bonita que o acolha, certo? E no caso da Estaiadinha, alia-se a beleza das formas da ponte com a importância dela para que São Paulo não pare. E mesmo assim, tá quase parando…

Acontece que, enquanto o desavisado deslumbrado chega na Estaiadinha e olha pra cima, algumas pessoas menos desacostumadas com São Paulo chegaram lá e olharam pra baixo. E viram (dã), a Estaiadinha tem um pé de concreto. E o pé de concreto está num terreno. E o terreno é relativamente grande, e estava absolutamente sem uso algum. O que acontece com uma área como essa, numa cidade hiperpovoada como São Paulo que carece urgentemente de espaço para acomodar tanta gente? Pois que, rápido como um relâmpago na terra da garoa (desculpem, piada infame), surge, bem ali colado na pista Local da Marginal Tietê, um novo elemento: tem a ponte, tem a pista, tem os estaios deslumbrantes e, agora, tem-se uma favela. Bem vindo, caro leitor, a recém-fundada Favela Estaiadinha, aparecida no meio de 2013 no terreno da soleira da ponte!

Parecia óbvio.

Parecia óbvio.

E foi.

E foi.

PA-RA-TU-DO! Gente morando na Estaiadinha NÃO-PO-DE! Não que gente morando (literalmente) embaixo da ponte seja lá uma graaande novidade em São Paulo. Ao contrário, são inúmeros os levantamentos, sempre imprecisos obviamente, de indigentes e favelados na cidade, mas na Estaiadinha NÃO! Quem quiser morar em barraco, que vá pra mias longe, não na Marginal Tietê, e em pleno vão da ponte mais bonita da cidade: que diabos acontece se o turista, em direção ao aeroporto ou ao Itaquerão, não focar só pra cima?  Não pode, não pode e não pode!

Em cinco meses da existência da Favela Estaiadinha, o que se viu foi um recorde absoluto de “tentativas de reintegração de posse” do terreno. Engraçado pensar em “reintegração de posse” quando o terreno é público, como no caso da Estaiadinha: quem é o dono? Se é público, é meu? É seu? É dos que estavam morando ali? Não importa: alega-se falta de segurança (“poooobres criancinhas correndo pra lá e pra cá, podem cair na pista e se machucar…”), alega-se até possíveis danos futuros ao pé da ponte! Sabe como é, apoiar dois madeirites em QUINZE METROS DE CONCRETO ARMADO pode comprometer. Ou pode ser assim também:

#MijoSulfúrico

#MijoSulfúrico

Cinco meses de sai-não sai, sai-não sai. Era hora de dar fim à história. O último episódio da novelinha se deu agora, no feriadão. Sabe como é, né? Menos gente na cidade, e quem ficou ficou vendo na TV a prisão dos caras do Mensalão (entenda mais sobre o episódio do Mensalão: Clique aqui). E não há melhor fim de história que soltar os pit-bulls: força do hábito, talvez. A Justiça determina a reintegração de posse forçada, o Choque chega à Favela Estaiadinha. Certamente teriam poucas pessoas vendo. É importante.

Pelo menos dessa vez o cenário é bonito.

Pelo menos dessa vez o cenário é bonito.

Só que, se os caras da PM já são aqueeela coisa que já estamos acostumados, pedir pro nego fazer trabalho externo em feriado prolongado que o sujeito não pôde viajar com família pra Praia Grande por estar de plantão na corporação é pedir pra coisa sair mal feita. No meio da saída “pacífica” dos moradores (desculpe, leitor, perdemos a conta de quantas vezes a mídia usou o termo “pacífica” no episódio em questão), onde evidentemente todos tinham pressa de resolver logo a parada, surgiu o imprevisto: FOGO NA FAVELA! Na beira da Marginal Tietê! E com gente correndo lá dentro! Aí, amigo, não há feriado que segure o batalhão de fotógrafos, repórteres e afins, e o novo point de SP virou a Favela Estaiadinha!

Olhar pra cima e ver FUMAÇA.

Olhar pra cima e ver FUMAÇA.

Foram nada menos que TRÊS (!!!) incêndios em DOIS (!!!!!!) dias na Favela Estaiadinha. Tudo no meio de um feriado. A versão oficial da PM é a de que o fogo foi tocado por moradores desconsolados pelo abandono compulsório do local de moradia. Faz sentido: se você não tem nada, só meia dúzia de tábuas e cinco telhas (e quer morar debaixo delas), nada melhor para um bom recomeço que tocar fogo em tudo o que se tem, certo?

Certo.

Certo.

Mas, o mais inacreditável, ainda estaria por vir. O que, certamente, deflagrou o embasbacamento da situação toda. O que NINGUÉM esperava é que ela, a Ponte Estaiadinha, símbolo máximo da modernidade paulistana em plena Marginal “mais movimentada do planeta” Tietê, era mais frágil do que parecia. Como madeirite é combustível, as labaredas dos incêndios “que os moradores descontentes provocaram” chegou aos alicerces da pista estaiada da estrutura (!!!!!!!!), e COMPROMETEU A SEGURANÇA DA PONTE (!!!!!!!!!!!!!!)

#morri

#morri

E a população? Bom, os ex-moradores da ex-favela Estaiadinha estão do outro lado do Rio Tamanduateí, há poucos metros de onde era a ocupação original, na Avenida do Estado. Estão no meio da calçada, debaixo de lonas improvisadas, esperando alguma solução. Mas pelo menos estão em relativa paz. Está ainda mais esteticamente feio que antes, na ocupação do terreno da ponte, mas pelo menos não está na Marginal Tietê, portanto longe das vistas do caminho do aeroporto.

Se perdeu, leitor? Calma lá então, que a gente recapitula: tentou-se garantir a circulação (pra isso existe a ponte), e a estética da coisa (pra isso extingue-se a ocupação). Só que a coisa toda foi feita com tanta pressa – e claro, descaso – que nesse momento a ponte está INTERDITADA POR TEMPO INDETERMINADO, causando ainda mais trânsito na região. A copa está chegando. Adeus, circulação!

Pelo menos a querida ponte / elemento agregador de valor ao camarote resiste, certo? Sim, claro. Está lá, perdeu sua função de ligação entre duas coisas e por isso não dá pra afirmar com certeza tratar-se ainda de uma ponte. Agora é só uma paisagem. Ainda bela, é claro, DESDE QUE o turista desavisado e deslumbrado com São Paulo passe com relativa velocidade por debaixo da ponte, e assim não tenha tempo de reparar no escurecimento de alguns dos estaios.

Coisas de Brasil

Coisas de Brasil

E fim. Brasil do que mesmo?

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PS: caro leitor, começou de novo a campanha do Papai Noel dos Correios, a qual eu sou grande entusiasta. Já existem cartinhas a serem adotadas em várias unidades, corre lá e pegue a sua! Faça uma criança carente mais feliz nesse natal!

Mais detalhes: CLIQUE AQUI.

Baderneiros: eles tem algo a dizer.

Eles estavam nas ruas conosco, naqueles momentos em que achávamos que estaríamos começando a mudar o Brasil. Eles também se vislumbraram com a ideia de um país mais democrático, mais acessível e mais igualitário, com mazelas clássicas se encaminhando para uma possível solução. Eles também levaram cartazes de causas que provavelmente não entendiam. E eles também presenciaram nosso silêncio egoísta, pós-reflexão sobre nossos próprios interesses. Assim como nós, eles tem pai, mãe, irmãos, trabalho, estudo, dificuldades cotidianas, medo, desânimo. Assim como nós, eles pagam seus impostos, mais do que podemos sentir. Assim como nós, os “baderneiros” são brasileiros, descontentes, esperançosos num idealizado futuro melhor. E hoje, são os novos inimigos públicos da nação…

O que leva um grupo reduzido de pessoas a, desde aquele nosso “junho estranho”, tal qual um super-herói às avessas ter uma vida comum durante o dia, e a noite transformar-se em paladinos mascarados de atitudes tão “teimosamente questionáveis”? Seriam os Black-Blocs brasileiros (como os mascarados se auto-intitulam, em referência ao famoso grupo anarquista europeu) tão diferentes de nós, brasileiros comuns transtornados, descrentes e conformados com a situação?

Brasileiros.

Brasileiros.

Acho importante colocar aqui, caro leitor, que eu não tenho um julgamento pré-formado sobre a validade ou não de um protesto feito com depredação. Antes que me acusem também de “baderneiro” por fazer este texto (não duvido, não duvido), ressalto também não ter ligação alguma com nenhum desses blocos ideológicos. Aliás, tirando a desconfiança de alguns poucos amigos, sequer conheço alguém que seja assumidamente um Black Bloc. Mas vejo que há a necessidade de se questionar, no meio de tantas notícias veiculadas pela mídia (em alguns casos absolutamente dependentes do sensacionalismo de direita, é verdade) com incontáveis menções às palavras “vândalos”, “baderna” e afins, por que apesar de tanto alarde negativo os manifestantes mascarados persistem, e parecem ser cada vez mais numerosos. Eles querem simbolizar alguma coisa. Eles querem dizer algo. Para o governo, sim, mas também para a gente.

Me parece, a princípio, uma conta simples, amigo. Se em junho fomos às ruas e fizemos barulho o suficiente para que algumas mudanças fossem sentidas (sim, houveram algumas vitórias, como o não-aumento da tarifa e o Mais Médicos), e agora voltamos para nosso conformismo em casa, sobra aos que querem manter o espírito de junho vivo fazer mais barulho nas ruas do que faziam antes. De certa forma, passamos a eles, os Black Blocs, a obrigação de “cobrir” o ruído que fizemos. Um pouco de bagunça é mesmo um mal necessário: lembremos que foi fechando ruas e tumultuando a “ordem” que as poucas conquistas foram conseguidas. Aquele lance de “manifeste-se sem atrapalhar ninguém” amplamente difundido na boca do povão indignado com o fechamento de ruas e rodovias tem seu contra-ponto: se ninguém está sendo atrapalhado, quem ouve?

Isso é um protesto. Lindo, louvável, altruísta. Mas que governo atenderia essa reivindicação?

Isso é um protesto. Lindo, louvável, altruísta, mas que governo atenderia essa reivindicação???

A questão é: o que queremos? Um Brasil que continue das mesmas formas que estamos acostumados desde muito tempo, ou algo mudado, com maior poder popular? Ressalta-se, me parece que é apenas “badernando” que a segunda opção é possível, e talvez esse “espírito” ainda exista somente pela atuação dos arruaceiros…

Duvida? Vamos analisar rapidamente como a grande mídia cobre as manifestações de agora, pós-junho insano. Se você já prestou atenção, caro leitor, certamente viu o seguinte esquema (deve estar em post-its na mesa de todo jornalista desses grandes veículos, só pode…)

Monte aqui sua manchete

Monte aqui sua manchete

Só lá pelo meio da reportagem é que, rapidamente, o locutor ou repórter menciona qual era a causa da tal “manifestação pacífica” – e rapidamente passa o microfone para o governador, ou algum fardado de patente “X” dizendo qual o plano de ação para o combate aos inimigos públicos. Opcional: ao fim, o âncora faz algum comentário reprovador do comportamento dos mascarados. Se você acompanha o noticiário com frequência, deve ter a impressão que os manifestos andam gradativamente voltando, certo? Errado: eles sempre continuaram (com menos gente, é verdade, mas quase todas as noites há uma passeata por aí), só que sem destaque na mídia. Destaque, aliás, que é conseguido apenas pela presença do Black Bloc. Percebe, caro leitor, que não se trata de “desvirtuar o assunto”, mas de “tornar-se novamente assunto”, mesmo com somente um ínfimo comentário no meio da reportagem? E é só por isso que você sabe, hoje, que as marchas continuam acontecendo, pelas mais diversas causas. Agora, a pergunta que não cala: que impressão teríamos sobre a “apatia política” da sociedade brasileira, caro amigo, sem o Black Bloc nas ruas garantindo os holofotes pra quem ainda não “foi pra casa”?

Talvez, no entanto, ainda esteja faltando compreender qual a causa dos caras, não é? Além é claro de dar apoio a outras causas (e ganhar apoio de causas externas, como os professores do RJ fizeram recentemente), é inegável que ainda existe toda aquela ideologia muito doida (e meio surreal pra muita gente, é verdade) do contra-capitalismo, do combate à relevância exacerbada do patrimônio e do anarquismo como libertação da opressão estatal e forma única de harmonia social. E se isso pode parecer-te, caro leitor, abstrato demais, dá pra entender direito quando tiramos o foco dos “baderneiros” e passamos a olhar os “contra-baderneiros”: a atuação estatal, personificada em decisões políticas públicas e na coerção policial autorizada (pero no mucho) pelos homens de gravata.

Truculência? Magiiina...

Truculência? Magiiina…

No começo das manifestações – e todos lembramos bem – a PM estava autorizada a usar balas de borracha. O problema delas, as balas de borracha, é que dificilmente atingiam o alvo correto. Agora, aos poucos cada governo estatal, que em teoria é quem dá o comando à PM, gradativamente está autorizando novamente o uso das borrachadas. Exatamente no momento em que, ao que parece, a “baderna” e a “depredação do patrimônio” está aumentando. Coincidência? A propósito, o manifestante (Black Bloc ou não) ainda tem sorte se o projétil for mesmo de borracha: pode não ser mais

A truculência policial, aliás, anda tomando proporções absurdamente desmedidas – coisa que a grande mídia, aquela das manchetes prontas, não anda mostrando por aí. Quase sempre, somos noticiados por videos amadores da internet (portanto, apenas quem tem internet vê), e no máximo uma nota oficial com os mesmos dizeres de sempre é veiculada no Jornal Nacional: “a PM informa que está apurando os fatos”. Foi o que disseram quando o Soldado Tiago Tiroteio apareceu para o Brasil, por exemplo. Essa semana, um motorista de ônibus foi brutalmente agredido por um policial aparentemente fissurado em UFC, que em vídeo se justifica apenas com um “ele relutou em mostrar sua CNH” (não acredita? Clique aqui e veja por si próprio). Tomou uma gravata, quase perdeu os sentidos. Se desse um tapinha no braço do PM, caracterizando assim o nocaute, provavelmente seria enquadrado por agressão e desacato. Claro, sem contar a incrível “cereja do bolo”, no melhor estilo “Pegadinha do Mallandro”:

Isso é um comportamento válido para uma corporação que simboliza o Estado, caro leitor? Longe de ser “olho por olho”, que é o que provavelmente você pode estar pensando agora: não há nenhum relato de manifestante ou transeunte que tenha sido agredido por um Black Bloc. Nenhum! Apenas o patrimônio fora degradado, o que aparentemente deve, na cabeça de um policial militar, justificar cenas como essa. Isso é “servir e proteger”, talvez… mas a pergunta não é proteger quem, ao que parece, é proteger o que (sem contar que, as vezes, esse “o que/quem” aí é bem estranho…). O patrimônio é degradado, e todos perdem a cabeça! Começa a fazer sentido, talvez, o que dizem os caras?

Se pensa que isso é “coisa de uma PM mal treinada”, e que isso não necessariamente simboliza a forma como o poder público enxerga suas prioridades, talvez você esteja ainda mais equivocado. Não é tão diferente da forma como o “dono da coleira dos pitbulls raivosos” enxerga toda a situação. Volte às manchetes que você está acostumado. Lá nos 75% da matéria, logo após mostrar o “patrimônio” (sempre ele) depredado, sempre vem os números: “(…) serão gastos tantos mil reais com uma resina especial para tirar a tinta do monumento”. Em seguida, uma imagem de funcionários da prefeitura já com um baldinho da tal “resina mágica e super-cara”, esfregando nervosamente a nova e controversa “arte sobre arte”…

Catapluft! Tome um baldinho de 12 mil reais

Catapluft! Tome aqui um baldinho de 12 mil reais

A próxima notícia do mesmo telejornal: “alunos da escola X na Zona Y da cidade estão sem merenda há duas semanas”. O mesmo governador se justifica, dizendo que é necessário tooooda uma burocracia, de licitações para contratação de uma empresa fornecedora de merenda escolar de qualidade, com leilão inverso, e que o processo realmente é demorado… um momento: a compra da “tinta mágica” não precisaria também passar pela contratação de uma empresa fornecedora? Essa licitação durou menos de 24 horas? “Caráter emergencial”, para que o patrimônio não fosse permanentemente atingido, dizem. E a fome dos estudantes, não é emergência? Hora de definir suas emergências, amigo governo! Hora de enxergarmos quais são elas – e discordarmos radicalmente delas, se for o caso!

Não, caro leitor. Novamente, reitero que não estou defendendo a depredação patrimonial, especialmente do patrimônio público. Também gosto de ver uma cidade limpa, bem cuidada: o inglês vê, mas eu também. Apenas defendo que está na hora, também, de enxergar a coisa toda por outros caminhos mais difíceis. Os Black Blocs, com suas atitudes “questionáveis”, estão aí pra nos mostrar quem de fato são seus inimigos – e você não precisa abraçar toda a ideologia anarquista ou concordar com “vandalismo” para, no mínimo concordar com ao menos um pouco do que eles estão apontando. Os baderneiros, gente como a gente com as nossas mesmas dificuldades cotidianas, estão nos chamando de volta pra rua – de onde talvez não deveríamos ter saído. Não são anjos, mas definitivamente nos mostram alguns demônios mais difíceis de serem vistos. E qual seria o exorcismo? Atendermos seu chamado? Votar conscientemente?

Comente aí, seja bem vindo! 🙂

O sujeito ralou. E ralou muito. Foi um ano, dois anos, três anos estudando como um condenado, perdendo quase que toda a sua adolescência, para finalmente obter o êxito sonhado: passar no vestibular, no curso que ele sempre quis, numa universidade pública, das mais conceituadas do Brasil e do mundo. O novo orgulho da família, com certeza.

Lá adiante, parece que já dá pra ver o futuro: um emprego decente, com um ótimo salário. Muitos olheiros já estão esperando os recém-formados: serão pegos quase que “no laço”. A vida se inicia, enfim. Passou o trote. Passou as festas. A universidade começou a “apertar”. Cada vez mais, o sujeito deixa de ter vida social novamente e, tal qual um vestibulando, pega-se novamente debruçado em livros e mais livros. As provas, os trabalhos e seminários ficando cada vez mais pesados. O terrível TCC está chegando.

O futuro é um sonho.

O futuro é um sonho.

E daí, subitamente, o Governo Federal resolve intervir. Cria novas regras para que esse sujeito se forme. Os claros horizontes parecem mais distantes. E depois de quatro, cinco, seis anos de estudos intermináveis, noites e mais noites debruçado em livros, incontáveis almoços e jantares no intragável bandejão da universidade, festas e mais festas perdidas, vida social quase zero novamente, eis que a “liberdade” tardará mais algum tempo. Frustrante, decepcionante. Mesmo que essa intervenção governamental seja para uma melhoria social.

Sim, eu sei, caro leitor. Você pensou imediatamente no caso dos médicos leite-com-pera e todo esse estardalhaço que os “doutores mimados” andam fazendo, antes com os novos projetos de graduação em medicina, e agora com a chegada dos cubanos. Leia novamente os parágrafos que antecedem, caro amigo: reparou que em momento algum eu citei que o curso que “o sujeito” fez era medicina? E isso se dá pelo fato de que, sejamos francos, visualizo o mesmo cenário para qualquer formação disponível nas universidades públicas brasileiras. E digo mais: isso não é um problema da “criação leite-com-pera” do futuro médico. Isso é um problema da universidade como um todo.

Veja também:

Aos desavisados: a universidade pública brasileira, sejam elas federais ou estaduais, muito embora tenha um altíssimo custo para a sociedade com o pagamento de seus impostos, nem de longe foi feita, foi planejada para ser um centro de formação de profissionais para a sociedade. O profissional ali formado está de fato pronto para o mercado – e o mercado esforça-se para absorver safras fresquinhas, ano a ano, de novos engenheiros, médicos, biólogos, geógrafos, cientistas em geral. Nenhum deles, no entanto, encontra na universidade uma formação filosófica para o trabalho direto com a sociedade.

Os pouquíssimos projetos que se formam dentro do mundo acadêmico neste sentido, ou é de iniciativa própria dos alunos – e o apoio, filosófico e financeiro, das pró-reitorias universitárias é sempre ínfimo, não raro, é zero -, ou é de alguma pró-reitoria obscura e que ninguém conhece, quase sempre com uma sigla que poucos sabem o que significa, e que no rateio de verbas da universidade quase sempre pega a menor fatia do bolo. Neste caso, ninguém quase nunca fica sabendo; no primeiro caso, boa parte dos que assim trabalham o fazem para “engrossar currículo” com trabalhos voluntários. Quando não, são estigmatizados, com estereótipos que insistentemente (sabe-se lá por que) são colocados negativamente, como “maconheiros” ou “utopistas patéticos”.

Enfim, é esse cara aqui...

Enfim, é esse cara aqui.

Ora, é sabido que muitos dos investimentos feitos dentro da universidade pública vem de agentes privados, os mesmos caras prontos a capturar qualquer formando de qualidade, mas é inconteste que grande parte do dinheiro que circula e mantem as atividades acadêmicas em pleno funcionamento é essencialmente público, vem da absurda carga tributária brasileira despejada na cabeça do cidadão comum: a universidade não deveria ter um claro papel social? Estima-se que o aluno universitário gaste em média dois mil reais mensais dos cofres públicos (faça a conta para quatro anos, leitor), para que este sujeito tenha as melhores condições possíveis de tornar-se futuramente um profissional de gabarito: mais da metade das famílias brasileiras vive com renda mensal abaixo disso! E em “renda mensal”, caro leitor, ainda contamos apenas o “salário líquido”, o que sobrou depois das incontáveis tributações retidas na fonte: a enorme arrecadação de impostos no valor final de cada produto consumido com esse “menos de dois mil” aí, é sabido, ainda arranca um belo pedaço do bolso do brasileiro comum.

É claro que, com conhecimento de causa, posso afirmar que a vida na universidade pública de fato não é as mil maravilhas que o vestibulando imagina. O Bandejão é de fato sem sabor, as bibliotecas nem sempre tem todos os títulos procurados, os professores não estão sempre disponíveis com sorrisos no rosto, assim por diante. De forma alguma, no entanto, pode-se negar que, em relação ao que acontece ali perto, logo após as saídas dos campi Brasil afora, a universidade pública é um verdadeiro oásis de prosperidade e riqueza. São dois mil reais mensais, entre aparatos públicos e bolsas e benefícios e pagamento de professores e funcionários, apenas para que esse sujeito estude.

E digo mais: o oásis é privado, não é de livre acesso a todos os que o construíram. Algumas das universidades públicas mais conceituadas do Brasil tem custos fixos bastante significativos com a tal “segurança”, práticas pensadas para que o espaço da universidade – por essência público – seja restrito apenas aos “do meio acadêmico”. Alambrados e mais alambrados cercam os campi Brasil afora, cada vez mais abundantes, cada vez mais altos. E não só o espaço é de benefício dos poucos ali presentes: em qual outro lugar do Brasil é possível comer uma comida (não saborosa, é verdade) balanceada, cuidada diretamente por nutricionistas, por dois reais ou menos? Se um brasileiro não vinculado à universidade tentar almoçar no bandejão, é obrigado a pagar preço de visitante, que sempre é ao menos o triplo disso. Em qual outro lugar do Brasil o jovem tem acesso a milhares, milhões de títulos para ler e retirar a vontade, em prateleiras e mais prateleiras sem fim? Se o jovem não universitário (a grande maioria) tentar retirar um livro, simplesmente é barrado. Em muitos casos, ele nem pode entrar na biblioteca. E está pagando caro por isso. Assim como os de lá de dentro, assim como todo o Brasil.

Acima: como é a USP. Abaixo: como o cara da USP vê a USP

Acima: como é a USP. Abaixo: como o cara da USP vê a USP

A pergunta que fica nesses incríveis dias de maior reflexão sobre a realidade da sociedade brasileira é: ela, a sociedade brasileira, repleta de carências em praticamente todos os quesitos (os médicos são apenas o mais evidente no momento), ainda tolera um investimento de tão grande porte sem praticamente nenhum retorno? A universidade e os universitários não teriam que, por filosofia, encarar as mazelas sociais brasileiras – inúmeras – como algo a ser minimamente refletido e trabalhado na formação de seus profissionais? Se o conceito de “patrão” implica em quem paga o seu salário, quem são os verdadeiros patrões dessa nova mão de obra qualificada? Por que, nesse meio altamente dependente de verba pública, o aluno universitário é coagido, por anseios individuais e também pela filosofia do meio acadêmico, a focar-se somente em sua formação, e seu futuro, e seu coeficiente de rendimento que lhe trará uma bolsa da Fapesp ou do CNPq (sem nem se dar conta de que, respectivamente, o “esp” e o “N” das siglas indicam que isso também é dinheiro público)?

Meio do curso.

Meio do curso.

É inaceitável que a formação do universitário brasileiro seja apenas calcada em formação profissional e mais nada. O trabalho comunitário precisa, sim, ser encarado filosoficamente como parte da formação de qualquer estudante da rede pública superior. A sociedade anseia urgentemente por profissionais qualificados, por gente que meta a mão na massa, que eduque, que trabalhe, que tenha iniciativa de ajudar a amenizar, ou que ao menos reflita sobre as tantas problemáticas que ultimamente foram evidenciadas pelas manifestações populares no Brasil. O conhecimento científico, o know-how passado ao aluno na universidade, deve ser encarado antes de mais nada como um investimento social no mesmo – e como qualquer investimento, por princípio carece de retorno.

Da mesma forma, é inaceitável que o universitário fique trancafiado no campus por tantos anos, muitas vezes com acesso irrestrito a leituras e mais leituras que justamente trabalhem as mazelas sociais, e em momento algum resolva olhar para o lado de fora do alambrado – e ver na prática o que está sendo teorizado há tantas páginas. Sua passagem pela universidade pública tem que obrigatoriamente ser marcada por projetos sociais que, mesmo de forma pontual, tenham por princípio a mitigação de tantos problemas. Cada linha lida numa mesa de biblioteca só está ali porque algum brasileiro desconhecido comprou um litro de leite para seus filhos – e na enorme maioria dos casos esses filhos jamais pisarão nessa biblioteca. Cada clique no mouse dos computadores dos diversos laboratórios de informática da universidade só é possível porque algum trabalhador anônimo tirou parte de seu orçamento para pagar a condução – e sabe que dificilmente alguém da sua família pegará algum dia a linha que vai para o campus.

O país carece de pontes

O país carece de pontes

Você condenou a postura dos médicos brasileiros sobre os fatos atuais, caro leitor? Eu também. Mas saiba de antemão que, de fato, eles simbolizam uma postura bastante difundida de onde eles saíram: locais almejados, sagrados, sonho de consumo de todo brasileiro. E muitos dos meus leitores, eu sei, estão nesse exato momento tentando se enfiar justamente ali, nesse tal “meio acadêmico”, querendo ser médicos que não medicarão para a sociedade, engenheiros que não construirão para o Brasil, cientistas que não pesquisarão para corrigir problemas sociais, educadores que não quererão ensinar as massas. O buraco é mais embaixo. De novo!

Uma das coisas que eu sempre disse quando conversava, umas semanas atrás, com quem me perguntasse sobre as manifestações do junho de 2013, era que algum dia aquilo tudo iria ser bem analisado e descrito pelos futuros historiadores nacionais e mundiais. Admito, caro leitor: essa foi uma bela saída para que eu disfarçasse um atravessado “não sei”. E era fato, eu realmente não sabia o que estava acontecendo. Me pergunto, agora com poeiras mais assentadas (mas não paradas, diga-se), se naquela época (oh, parece já estar virando passado) alguém tinha já alguma noção do que se passava…

E não, não haverá tão cedo uma imagem mais simbólica e "bocaberteante" que essa!

E não, não haverá tão cedo uma imagem mais simbólica e “bocaberteante” que essa!

Ha um mês atrás, eu estava nas ruas com amigos, andando por avenidas largas de uma cidade do interior de SP, com cartazes nas mãos e gritos de ordem e patriotismo, algo que minha geração nunca sequer cogitara ver. Na época, tinha comigo um gosto que existia esperanças num Brasil realmente diferente, mais justo e igualitário, com correções de problemas históricos e crônicos da nossa sociedade sendo finalmente sanados de alguma forma. Por sinal, usei esse espírito pra escrever o texto que seria o maior hit da história do BdQ, com assombrosa repercussão por amigos e redes sociais, algo nunca visto por esse blogueiro. Mas, é verdade, acho que ninguém tinha muita ideia sobre o tamanho da coisa toda. O que afirmo agora, talvez, é que parece haver um consenso sobre como tudo isso terminou. É verdade, muitos avanços foram conseguidos. Mais importante, é evidente que um recado claro foi dado pela sociedade aos seus representantes, e isso por si só já é fantástico! Seria, no entanto, somente eu a sentir daqui um gosto de “bom, mas poderia ter sido melhor”? O que raios aconteceu nesse insano inverno de 2013, caro leitor? Será que alguém já consegue fazer o papel de “historiador do presente”, e dar dicas de como interpretar com realidade tudo isso?

Este blogueiro aqui tem uma opinião, feita com muito tempo de reflexão e, claro, com os pés atolados até as canelas em manteiga. Veja, caro amigo: é uma opinião, de alguém que também não teve até agora muita certeza do que estava falando, e que não tem certeza até agora se está dando pitacos certeiros nisso tudo. Na verdade, não sei nem se é uma opinião original, de repente alguém já pensou algo muito parecido com isso e eu não sei… mas, talvez, ajude a explicar um pouco desse gostinho agridoce pós-loucuras de um junho inesquecível. Me permite? Discorde a vontade (aliás, faça-me o enorme favor de discordar) nos comentários, se quiser: me ajude a fabricar uma interpretação minimamente plausível de por que “o nosso gigante está cochilando”…

Proponho que usemos, a partir desse ponto, algumas perguntas e respostas para desencadear o raciocínio. No melhor estilo “meme do face”, começo:

1 – Quem somos?

Uma coisa óbvia desde o começo das manifestações, e que qualquer um que tenha ido às ruas ou ligado sua TV nesse mês que se passou é: nem de longe as passeatas espalhadas Brasil afora tiveram membros de todas as “classes sociais” da sociedade brasileira. É um equívoco dizer que era “o povo” se manifestando, afinal: era apenas uma parte do povo. E essa parte, todos sabem, é a classe média brasileira. Mas isso é senso comum… agora, resta-nos a pergunta: O que é a classe média brasileira? Se você acha que aqui eu usarei Marx pra tentar explicar… você está certo!

Uma divisão clássica de sociedade, inspirada / chupinhada dos textos marxistas, apontam para três distintas “castas” sociais: a aristocracia, a burguesia e a classe operária. A primeira, a aristocracia, diz respeito aos “melhores” (sim, tradução do grego que originou a palavra), aqueles com maior influência política e territorial (pensou nos nossos intocáveis? Pensou certo!). A burguesia, por sua vez, é a classe detentora dos meios de produção. Hoje, seriam nossos empresários, banqueiros, administradores… E claro, no Brasil há uma confusão entre aristocracia e burguesia, mas o importante é: a nossa classe média não entra em nenhum deles. A classe média brasileira, caro leitor, é formada em sua grande maioria por pessoas que, em Marx, se encaixariam na tal da classe operária. Indivíduos que não detém poder algum de produção, nem de administração, nem de “relevância política” num cenário mais abrangente. Mas, com vimos mês passado, essa galera fez um barulho danado… de onde veio essa força barulhenta e tão ressoante da classe média nacional?

E a resposta é perturbadora, leitor: esse poder veio dele, o capitalismo. O que caracteriza o brasileiro comum como “classe média” é pura e simplesmente seu poder de consumo que, como sabemos, tem aumentado gradativamente nos últimos anos – e isso é bom. O que caracteriza o brasileiro comum como “classe média” nada mais é do que sua nova capacidade de, as vezes, ir com a família no shopping comer no Spoleto, e se sentir importante por ter ali na mesa um prato feito exatamente por sua preferência de ingredientes, não mais com aquela frieza fordista de um marmitex.

"Quantas porções de  transporte público, senhor?"

“Quantas porções de transporte público, senhor?”

E com essa capacidade em mãos (precisamente, no bolso), o brasileiro aprendeu consequentemente a reclamar. O cliente tem sempre razão, e ele está pagando pelo produto personalizado, “espoletizado” que agora ele pode consumir – claro, caso esteja detalhadamente de acordo com seu gosto.

Guarde essa informação, ela será útil mais adiante. Por agora, vamos a próxima “pergunta-meme”:

2 – O que queremos?

Poderia, nesse ponto da reflexão, despejar todos os motivos pelos quais as pessoas saíram às ruas naqueles dias memoráveis. Você sabe, você viu: todo tipo de cartaz apareceu, em meio a sequências grotescas de gritos e trechos do hino nacional. O brasileiro sabe que paga impostos demais, por serviços públicos que muito se deixa a desejar (ou, se preferir, compra um produto de qualidade e recebe outro inferior).

Talvez, aqui o gigante tenha ligado a seta do carro, indicando sua intenção de pegar a curva errada que o tiraria do melhor caminho rumo ao “Novo Brasil”. A partir desse exato ponto do raciocínio, a classe média manifestante fatalmente começou a entender que o serviço público era um produto, e seu imposto era o preço a ser pago pelo mesmo. Era impossível ser diferente, caro leitor: esse cara sempre teve única e exclusivamente seu direito de reclamação associado ao consumo de uma ou outra coisa. Esse cara nunca sentiu o poder das ruas como palco político, e em contrapartida é um velho conhecido dos SACs das empresas as quais consome. Quando menos se viu, a Avenida Paulista deixou de ser o “grande palco das revoluções”, e se transformou num megalomaníaco, inusitado e bizarro “Procon Social” gigante, em que cada um despejou uma bandeja cheia de reivindicações ao mesmo tempo.

Algo assim.

Algo assim.

E a partir daqui, com a mentalidade consumista que lhe dá o direito de exigir da “loja” o “produto” com as exatas especificações de seu agrado, o movimento manifestante único começou a se desintegrar, para movimentos menores em que cada um defende a pauta que, para si, é mais urgente. Se na mesma grande roda haviam “os caretas” e “o grupo das 4:20”, vemos o primeiro racha, com o foco de uma parte da multidão focada exclusivamente no movimento pró-legalização da maconha. Se no mesmo mar de gente há os “evangeliconsumistas” e os homoafetivos, mais um grupo se destaca da multidão para novas passeatas em prol apenas do casamento igualitário. Cada um defendendo a causa que lhe é mais urgente individualmente – para desespero dos pró-pautas comuns, mais crônicas / estruturais e com maior margem para divagação, como a saúde e a educação, gritadas a plenos pulmões por multidões frenéticas e extasiadas apenas alguns dias antes.

Até aqui, falamos do período “pré-susto dos governantes”. E é fato que os caras realmente se assustaram (e esse é o grande e indiscutível legado positivo de tudo o que aconteceu), e começaram a tomar medidas urgenciais que, grosso modo, satisfariam o clamor popular um pouco mais, especialmente naqueles problemas que nós chamamos há pouco de estruturais. Mas por que ainda deu “meio errado”? Talvez, seja hora da próxima “pergunta-meme”:

3 – Como queremos?

Essa “mentalidade consumista” dessa classe média que saiu as ruas teve efeitos ainda mais devastadores nas manifestações no período “pós-susto” dos governantes. Nem é o caso de se referir, aqui, ao tal do “pleberendo” que ninguém entendeu e que foi “semi-esquecido” logo em seguida – a propósito, graças a Deus. Não vejo num futuro tão próximo a possibilidade de uma tomada coletiva de decisões que sejam eficientes para os problemas do Brasil: falta senso crítico (desculpe, leitor antigo, eu tive que falar novamente da educação…) para esse povo poder pensar a complexidade social e política brasileira. Mas voltemos ao raciocínio anterior, que a coisa é mais embaixo.

Se esse “Fator Spoleto” teve antes efeitos positivos ao empolgar o povo a ir pras ruas, em seguida ele foi o estopim para que a coisa degringolasse logo em seguida, caro leitor. É impossível, a curto prazo, estabelecer melhorias estruturais nos diferentes serviços sociais sem que fatalmente algum grupo tenha a privação de alguns (poucos, verdade) privilégios individuais: é errado pensar em saúde, transporte e educação com essa mentalidade. Investir em transporte público para desfazer o nó da mobilidade urbana é também pensar em políticas de “desincentivo” ao carro, como o projeto do pedágio urbano (terror de muitos motoristas da classe média) e os corredores de ônibus, das maiores reclamações de quem está, logo ao lado, preso no congestionamento –  e aqui, a categoria dos “possuidores de carro” ganham um inevitável prejuízo individual. Esse cara, ao notar uma situação que para ele é mais desconfortável, vai fatalmente ser contra tais propostas. E, na lógica da atuação política como algo que deve satisfazer todas as suas mínimas vontades, como dizer que esse cara é um filho da puta?

O mesmo, a propósito, se aplica ao bizarro caso, atualíssimo, das reações adversas da classe médica às propostas do Mais Médicos, programa recém-lançado por Brasília para levar doutores a todos os cantos do Brasil. É fato que a proposta parece tentadora a quem hoje critica ferrenhamente a postura da classe (mesmo que crie, assim, mais um baita racha na “grande roda”): salários altíssimos e emprego garantido logo após a formatura – o Governo Federal, afinal, está falando exatamente a língua que essa classe média brasileira entende: dinheiro, poder de consumo. Mas confesse, caro amigo: qual seria a sua vontade de, mesmo com o bolso cheio, trabalhar sob condições precárias e sem aparatos básicos, em alguma cidade condenada dos cafundós da nação? Você se sentiria “espoleteado” sob essas condições?

"Sim, nós queremos nosso Spoleto! E sim, nós comemos de jaleco!"

“Sim, nós queremos Spoleto! E sim, nós comemos de jaleco!”

E esse é o gancho perfeito para a última “pergunta-meme” do dia:

4 – Pra quando queremos?

Aqui, caro leitor, entra outro pulo do gato nessa discussão toda. Para que se faça as melhorias que todos nós ansiamos quando do começo das manifestações, infelizmente temos que pensar em dois fatores: tempo e qualidade. Pegando ainda o exemplo da saúde, parece impossível que se haja um plano que, ao mesmo tempo, atenda todas as demandas “espoléticas” de todos os grupos envolvidos, doutores e pacientes moribundos dos cafundós, de forma rápida e eficaz. O Brasil é um país de proporções continentais que inviabiliza o transporte rápido de materiais, mesmo que simples, a todas as UBS existentes e em projeto país afora. E não adianta culpar os desvios de dinheiro e a corrupção: aqui, falamos de logística mesmo, algo terrível para qualquer planejador público em qualquer escala de análise – que dirá, o Brasil todo!

O problema é que, como consumidores que acionam o Procon, queremos sempre a solução rápida dos problemas, e enquanto ela não vem, o tal gigante começa a bocejar novamente. As passeatas de dezenas de milhares de pessoas tornaram-se cada vez mais escassas. Mesmo as manifestações menores sentem já o peso do desânimo: com um anseio absolutamente imediatista (que não surpreende ninguém, a propósito), o brasileiro perdeu um pouco do pique de sair às ruas: falta-lhe paciência para esperar algo que não seja um milagre – talvez por já ter esperado demais, quem sabe, mas enquanto isso o gigante já está andando sob o acostamento, esterçado rumo à saída errada da rodovia para o sucesso absoluto…

Para que se evite o gosto agridoce do “sucesso que não foi muito sucesso”, caro leitor, é hora de mudar um pouco o enfoque da nossa participação política: o recado já foi dado, o susto já foi sentido. O momento agora é de, ao mesmo tempo, continuar com as pequenas demandas, sim, mas também de acompanhar criteriosamente cada passo dado pelos governantes, em sua cidade, no seu estado, em Brasília.

Talvez, caro leitor, veremos um Brasil melhor em breve. Algumas vitórias significativas já foram sentidas, é um fato. O importante é que as coisas precisam mudar: o clima de pessimismo, infelizmente, está gradativamente voltando. Por ora, enquanto ainda não se bate o martelo decretando-se o encerramento desse “junho louco”, talvez seja hora de, por que não, nos esforçarmos num exercício coletivo para cancelar um pouco do nosso “Fator Spoleto” totalmente inadequado para um pensamento social como o que se tentou fazer nas últimas semanas, e trabalhar um pouco mais com outra campanha publicitária famosa, essa sim, mais condizente com melhorias que sejam para a sociedade em sua totalidade:

Pense nisso!

Talvez possa, sim…

Como eu disse, caro amigo, as linhas que precedem foram escritas com um enorme senso de incerteza. Terei, portanto, um grande prazer em ver aí embaixo suas críticas, concordantes ou não com o pensamento que tentou-se desencadear aqui. Fique a vontade, sim? Ajude o blogueiro / brasileiro aqui a entender melhor as coisas. Daqui, espero também ter te ajudado a entender um pouquinho do que aconteceu…

Forte abraço e até a próxima!

A locomotiva da nação

Nota inicial: este texto, leitor, não foi escrito originalmente para o BdQ, mas por motivos de força maior, aqui ele veio parar. Você vai notar que este texto tem um estilo (e principalmente um tamanho) bem diferente do que se é habituado por aqui, e a explicação é: este texto originalmente foi escrito para uma coluna de jornal, com direito a normas editoriais e limite de caracteres, e por isso precisava ser mais direto e sucinto.

Por algum motivo alheio a meu conhecimento, a Coluna do CES, publicada no Jornal A Verdade Regional semanalmente, não saiu na sexta feira passada, dia 12. Acompanhe o calendário, amigo leitor: este texto, na verdade, foi escrito no dia 7, fazendo referência ao feriado do dia 9, e seria publicado no dia 12. Como não foi, publico-o aqui no dia 15. E é por isso que você vai notar coisas “estranhas”, como eu me referir ao nove de julho como “essa semana”. Tá aí a explicação.

Aproveito a ocasião para te pedir desculpas, caro leitor. Este projeto que abracei, da Coluna do CES, muito embora anda me sendo bastante prazeroso, anda ocupando boa parte do meu “espaço criativo”, e por isso, infelizmente, tive que deixar o BdQ um pouco às traças, e isso não é nada bom. Tenho saudades de poder escrever aqui mais vezes: é como se publicar esse texto aqui no blog fosse apenas um “plano B”. É chato isso! O BdQ é meu xodó antigo, poxa!

Prometo que ainda volto com força total, ok? As coisas precisam se acentar antes na vida, em vários planos. Conto com sua compreensão, sim? Se você não conhece a Coluna do CES, onde o autor aqui anda aparecendo com muito mais frequência, clique aqui para conferir as edições passadas, em um registro que ando fazendo em meu perfil do facebook (não é vaidade, apenas gosto de ter meus filhos devidamente documentados). Aproveite e clique aqui para conhecer o trabalho do CES, que anda me apaixonando gradativamente. Ah, e clique aqui para ler todo o Jornal A Verdade Regional, que sai todas as sextas em Várzea Paulista.

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Você, leitor, que tem em mãos hoje essa nova edição do JV, deve ter ficado feliz ao constatar que essa semana foi “mais curta”. Ao trabalhador é sempre um deleite – e nós, paulistas, sabemos como ninguém o que é trabalhar exaustivamente para poder gozar de um feriado como esse. Tem ainda o gostinho de “bem feito aos preguiçosos outros povos da nação” que sentimos, ao lembrar que o Nove de Julho é o feriado estadual da Revolução Constitucionalista de 1932, um dos episódios mais sangrentos e ufanistas de nosso Estado ao longo do tempo. Não faremos do texto de hoje uma aula de história, caro leitor: o espaço desta coluna seria insuficiente. Mas hoje aproveitamos a ocasião e sugerimos uma pauta: o que afinal é “ser paulista”?

Certamente o leitor já ouviu por aí certas frases de efeito quando o assunto é o papel de São Paulo para o resto do Brasil. “São Paulo é a locomotiva da nação”, uns dizem. “São Paulo seria melhor se fosse independente”, comum ouvir. É fato que os indicadores econômicos amplamente divulgados nas escolas e em quaisquer fontes oficiais mostram uma aglomeração de riqueza em São Paulo que, conclusões óbvias, dão a entender que teríamos no “País São Paulo” um núcleo de prosperidade econômica e social, fruto do “povo mais trabalhador da nação” como teimosamente gostamos de frisar.

No entanto, e isso também não é nenhuma novidade, boa parte do esforço, da mão de obra, das riquezas e recursos consumidos em São Paulo hoje e sempre é indiscutivelmente originado de outras unidades da federação brasileira. O leitor sabia, por exemplo, que a cidade com maior número de nordestinos no Brasil todo é a capital paulistana? Esses, ao que consta, dão duro todos os dias como qualquer “nativo”, e merecidamente também se deleitaram com o feriadinho. O mesmo se aplica aos “nossos” gaúchos, italianos, nortistas, latinos, mineiros, japoneses, cariocas. Faz sentido que, hoje, continuemos tratando com preconceito e deboche toda essa gente que ajudou e ainda ajuda a locomotiva a andar?

O que é ser paulista, caro leitor? É ser trabalhador, é lutar cada dia por seu sustento e fazer a locomotiva puxar o trem. Se nós paulistas somos locomotiva, porém, agradecemos hoje por termos em mãos todo esse carvão forasteiro, do resto do Brasil e do mundo, sem o qual jamais andaríamos.

Cajamar/SP, 17 de junho de 2013.

Meu querido, estimado amigo!

Essa mensagem é pra você que, como muitos que eu conheço e conheci, estão nesse momento descrentes do que pode/irá acontecer, dentro de todas essas manifestações pipocando MUNDO afora em prol de um melhor país. Essa mensagem também é pra você, que está bravo aí dentro do seu carro/ônibus parado há horas, sem poder andar pelo trânsito travado causado por esses “vagabundos”. Essa mensagem é pra você, que por seus diversos motivos, acha que não deve se misturar. Acompanhando pela TV aberta, vê uma realidade a qual, acha, está descolado. E quer, acima de tudo, acompanhar a Copa das Confederações.

Meu amigo! Queria estar aí contigo e te dar um abraço! Sabe por que? Porque, embora tanta gente esteja nesse momento condenando-te por sua postura (a)política, eu te entendo. De verdade. Eu sei o que se passa aí em seu coração. E eu sei, porque tenho que te confessar: o meu coração também tentou me dizer a mesma coisa.

Eu nasci, caro amigo, numa cidadezinha do interior, no longínquo ano de 1983 – e sim, fico feliz de, aos 30 anos, muita gente dizer aquele hipócrita “você ainda é jovem”. Nesse exato momento, querido, sinto-me velho. Eu era uma criança de fraldas quando meus pais viram pela TV o Diretas Já – e nunca vi nada sequer parecido em meu país. Papai conta que, quando da morte de Tancredo Neves após a redemocratização do Brasil, acordou minha mãe no sofá da sala para dar a notícia. Eu cresci, amigo, num mundo onde as coisas nunca fervilharam, longe de centros urbanos, aglomerações, manifestações. E ergo a mão aos céus pra dizer: tive uma infância feliz, sem muitas dificuldades, sem apertos financeiros. Hoje eu tenho carro, fruto do meu trabalho, fruto do meu estudo numa das melhores universidades do país. Eu sou um cara que, hoje, poderia dizer com convicção: não me pesaria tanto no bolso um aumento de R$0,20 na passagem.

Ao querer te abraçar, eu represento toda uma geração que nasceu nessa década de 80, jovem demais pra ter ranços da ditadura, velho demais pra ter esperanças de um país melhor. Minha infância, adolescência e primeira fase adulta foi permeada por um silêncio ensurdecedor do meu povo, que almeja, mais que tudo, trabalhar durante o dia e se trancar, exausto, em casa no fim da noite, assistindo TV com a família, vendo aí um modelinho perfeito de vida feliz – e assim, eu te entendo quando da sua irritação com os protestos, e a “baderna”, e o trânsito engarrafado, e o “vandalismo” que vê agora.

Mas sabe, caro amigo, preciso te contar um segredo. Mesmo banhado dessa “vida feliz” que eu consegui, a mim sempre rolou uma coisa estranha na garganta. Uma sensação esquisita, de apatia, um grande e indescritível mal-estar. Eu, do meu carro, vejo ao lado um ônibus degradado, com pessoas entaladas como sardinha lá dentro: eu estou mais confortável, sim, mas estou preso no trânsito, com o vidro fechado e rezando incessantemente para que nenhum revólver apareça na minha janela: consigo dizer que eu estou mais feliz que os caras ali da janela do enlatado? Eu não vejo a hora de chegar em casa: tenho pânico da rua! Sinto que vou morrer a qualquer momento por simplesmente estar no lugar errado na hora errada – e sinto, nem sei dizer ao certo qual é a “hora errada” e o “lugar errado”! Eu não sei se tenho mais pena ou medo daqueles que estão abaixo de mim! Eu tenho a vida que pedi a Deus, mas gostaria de perguntar ao Senhor dos Céus: Deus, por que não estou feliz?

Será mesmo que você, meu queridíssimo amigo, não compartilha disso comigo e nem sabe por que? Eu nunca tive chances de dizer isso pra ninguém, e você? Todos os dias eu vejo a violência aumentando, meu medo aumentando, o preço do meu plano de saúde aumentando, a mensalidade da escola de meus sobrinhos aumentando, e nunca deixei de me engasgar e pensar “mas eu já pago por educação e por saúde”. E assim, meu sentimento de “isso nunca vai mudar” vem sendo cada vez mais onisciente em minhas reflexões. Eu não estou feliz com o Brasil em que vivo, vejo rankings e mais rankings de educação, saúde, desemprego, carga tributária sendo cada vez mais devastadores de minhas esperanças. Vejo absurdos atrás de absurdos da parte dos caras que eu mesmo ajudei a colocar lá dentro dos prédios do poder: cada vez maiores, mais escandalosos – mas simplesmente parei de pensar a respeito: nada nunca mudaria! É assim desde que me dou por gente! É assim que me ensinaram. É assim que, infelizmente, viverei e morrerei nessa minha frágil “felicidade cotidiana”…

É só comigo, amigão? Por favor querido, quebre muitos de seus conceitos já tão introjetados em sua alma e veja lá no fundo do seu coração: tente por um segundo se questionar sobre sua felicidade em ser um brasileiro submerso nesse conceito de “felicidade-classe-média”, o qual eu também compartilho. Existe também um desânimo em seu espírito? Novamente: eu te entendo!

Mas pela primeira vez em toda a minha vida, eu senti algo que veio dar-me um mínimo acalento: companhia. Eu vejo as manifestações pipocando mundo afora por um país melhor: eu vejo a mim mesmo lá dentro. Mais da metade daqueles vagabundos, aparentemente, também não sentiriam tanto no bolso por R$0,20, assim como eu já confessei lá em cima. Eu vejo gente angustiada, com as mesmas angústias que sempre tentei colocar na beira de um copo de cerveja, e que sempre acabaram com um bufar desanimado e um “oh, paciência…”, seguido de qualquer outro assunto de mesa de bar. Eles podem não me representar pela mesquinharia de vinte centavos, mas me representam na indignação generalizada, que todo mundo sempre soube existir, mas que dessa vez – incrível, emocionante, maravilhoso – foi além do meu bufar na beira do copo!

Eu preciso te confessar, querido: estou de queixo completamente caído! Sonhei com esse dia sem sequer cogitar que ele podia acontecer de verdade! É como pedir alguém em casamento, é como sair do armário, é como passar no vestibular: estou, com ênfase em cada sílaba, completamente e-mo-ci-o-na-do com o que (me) vi nas manifestações desse já mítico junho de 2013! Pode ser que nada aconteça, como meu pessimismo de três décadas tende a pensar dentro do meu coração, mas apenas a esperança do “é possível viver sem tristeza” já me fará ver o Brasil com outros olhos daqui pro resto da minha medíocre vida: no mínimo, a partir de agora tenho certeza que não estou só!

Meu querido! Hoje, eu preciso ir ao teu encontro, pegar em tua mão, e com um sorriso embargado em lágrimas te convidar: sai de casa, desce do fretado, sai do seu carro e vem pra rua comigo? Vamos, nem que seja só por hoje, deixar a televisão (símbolo máximo da nossa felicidade leviana) de lado e encontrar a nós mesmos na multidão? Sim, eu sei, também penso que pode dar em nada, mas não consigo deixar de pensar também que nunca mais teremos outra chance como essa. Não estamos sós, e precisamos encontrar nossos parecidos, juntar nossas vozes, quebrar finalmente nossa eterna “inveja boa” da geração das Diretas Já. É algo grande demais para que, se der certo, eu tenha a vergonha de dizer aos meus futuros filhos e netos que não estive lá – e eu quero chorar por ter tentado e não conseguido, não por ter engasgado um insosso “não fui”. É uma chance boa demais pra ser deixada de lado: pense que, na pior das hipóteses, perdemos apenas uma noite de nossas vidas, uma noite que seria preenchida pela novela, ou pelo Datena, ou por qualquer outra coisa que certamente acontecerá de novo amanhã, e depois, e depois…

Meu irmão de tristeza, meu irmão de descrença: vamos? Nem que seja pra te encontrar lá e te dar um abraço apertado, e chorarmos juntos por essa vida que compartilhamos…

Deus acompanhe cada passo seu, querido! Eu vejo algo diferente no futuro: compartilhe dessa visão comigo, sim?

Atenciosamente,

Rafael Galeoti de Lima, 30 anos, classe média, geógrafo e professor.

O Manifesto e o Diálogo

Olá caro leitor imbuído de certezas petrificadas, condutas sacralizadas e convicções inabaláveis. Nesta breve introdução convido o interlocutor a uma árdua tarefa, repleta de intempéries, catarses e tremores em suas ideologias tão socialmente bem construídas. A tarefa consiste apenas em um passo básico: tomar conhecimento do diferente, do oposto, do contrário.

Acabo de ler a belíssima obra MANIFESTO DO NADA NA TERRA DO NUNCA, do sempre competentemente crítico Lobão, e me veio uma necessidade de escrever a respeito, primeiramente em repúdio às respostas oligofrênicas e escalafobéticas dos incautos não-leitores da obra, que se valem das únicas armas dos incapazes: a violência verbal e a desmoralização do autor, o taxando de drogado, decadente ou qualquer xingamento. Em segundo lugar este singelo texto procura dialogar com o próprio autor, exaltando o que, na minha concepção, são os pontos fortes da obra, mas também fazendo considerações que julgo importantes. Mas em momento algum colocarei em xeque o esforço intelectual do Lobão, pois considero seu Manifesto uma obra de extrema relevância sociológica, mesmo para os que não compartilham de suas opiniões.

E vivas ao Manifesto

E vivas ao Manifesto

Para entender o Manifesto é necessário ter algum conhecimento não tão superficial da trajetória musical e política de seu autor. O principal ataque dos idiotas detentores dos discursos alheios é de que Lobão se tornou um reacionário pró-ditadura. Isso é falta de leitura e conhecimento. A vida de Lobão é repleta de altos e baixos superados sem ajuda do Estado, sem lei Rouanet, apenas por sua genialidade de empreender o novo. Seus shows eram boicotados, sua plateia vítima de constrangimentos dos mais variados tipos. Tentaram impedi-lo de exercer seu trabalho, como se fosse um subversivo, um mal social. Era um perseguido político em plena era democrática. Frágil democracia. Mesmo assim prevaleceu e merece respeito por sua irrefutável capacidade inventiva e qualidade indiscutível como músico, compositor e escritor.

Agora vamos trabalhar a obra, mas sem polêmica, por favor. Vamos nos comportar civilizadamente e não como um bando de hienas procurando carniça onde não há. O livro é uma visão muito pessoal sobre os rumos da política, da sociedade e da classe artística brasileira. É uma viagem ao íntimo do pensamento do cidadão brasileiro e uma catarse contra a pasmaceira que nos rodeia. Portanto, mesmo se discorda, leia!

Lobão dedicou um capítulo a problematizar a dita Comissão da Verdade, sendo que está deveria se chamar Comissão da Meia Verdade, pois vitimiza os rebeldes e condena os militares do Estado. Ocorre que a própria Aliança Nacional Libertadora (ANL) cometia assassinatos,  justiçamentos de membros do grupo, assaltos, sequestros e, mesmo assim, não serão investigados, mas vitimizados e tratados como heróis que nunca foram de uma libertação que nunca ocorreu. Num mar de culpados a anistia irrestrita  não me soa como incoerente. Lobão não defende a ditadura, mas a coerência das atividades da Comissão, conforme o trecho a seguir:

“Os militares abusaram (e abusaram mesmo) do expediente de torturas e execuções dos guerrilheiros e de pessoas que nada tinham a ver com a guerrilha em questão, se aboletaram no poder, quebrando a promessa de devolvê-lo a um governo democrático, se afastando por completo da sociedade civil, cassando os principais líderes políticos da época, como Juscelino e Lacerda, e isso deve ser devidamente esclarecido. Mas nada justifica o acobertamento histórico de quaisquer outros fatos, independentemente do lado. É apenas a História do país que clama por ser contada de forma equânime, como assim exige qualquer espírito justo e democrático de um povo e de uma cultura.”

Nesse contexto da busca por culpados e vitimas, mocinhos e vilões, Lobão sinaliza que o governo brasileiro anseia formar uma nova aliança comunista para a América Latina, e essa é uma visão que particularmente discordo e entendo as relações do Brasil com Cuba não como uma tentativa da instauração de um governo ditatorial esquerdista condenador do lucro, das empresas e da iniciativa individual para a institucionalização latino americana do paternalismo, do Estado-babá etc. Encaro essa relação mais como uma política estratégica para quando Cuba abrir seu mercado ( que é questão de tempo). Um sinalizador importante para mostrar que o Brasil é um país capitalista integrado na dinâmica internacional é a nomeação de um brasileiro para o cargo mais importante do comércio internacional, a diretoria da OMC.

Da mesma forma vejo a aproximação do Brasil não somente com o Irã, mas com o oriente médio como um todo, como um importante passo nas relações diplomáticas e comerciais com os países árabes. É importante ressaltar que o comércio foi verdadeiramente fortalecido, visto que o último chefe de Estado brasileiro a visitar os países árabes antes do Lula foi o D. Pedro II. Também devemos reconhecer o trabalho da diplomacia brasileira, que nos últimos anos se consolidou como referência internacional pela qualidade de nossos diplomatas na mediação de conflitos fazendo com o que o Brasil dispute uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. O impeditivo é relacionado a questões internas ao Brasil, como sistema prisional, muito bem descrito pelo Lobão, e pelo tratamento às cracolândias nas cidades brasileiras, em especial São Paulo.

Grande Lobo

Grande Lobo

Lobão, em seu manifesto, também demonstra seu descontentamento contundente com o ineficaz intervencionismo estatal na economia e nas normas de conduta social. Economicamente reforça a ideia da incompatibilidade da nossa carga tributária com os serviços prestados à população, em especial no tocante à educação, saúde e infraestrutura. E com razão! Mesmo com uma das maiores cargas tributárias do mundo, o Brasil acumula uma dívida pública  de quase 60% do PIB (O país emite títulos da dívida quando a arrecadação é menor que o gasto). A cobrança de impostos abusivos evita que as famílias tenham autonomia para escolher onde gastar seu dinheiro, fruto do seu trabalho. Há também a política de concessão de meia entrada em eventos culturais como forma de incentivo às pessoas de determinados segmentos sociais tenham acesso à cultura mais facilmente, no entanto isso não vem acompanhada com uma política de desoneração sobre quem presta o serviço.

Em relação à infraestrutura Lobão tece duras críticas ao estado deplorável das estradas federais, bem como à situação de descaso nas localidades mais afastadas do centro econômico. Leitores, compreendam uma coisa: RODOVIAS PAULISTAS NÃO REPRESENTAM O BRASIL. O caminho para sair do buraco é fazer concessões EFICIENTES, não BARATAS. Crucial é analisar a capacidade técnica das empresas que disputam os leilões das estradas. essa decisão evitaria que contratos fossem alterados, obras fossem paradas, serviços fossem de péssima qualidade e pedágios fossem incompatíveis com a qualidade oferecida. Mais importante que preço é qualidade.

Sobre a educação, Lobão afirma que há uma bancada para analisar a origem étnica do sujeito em detrimento do mérito, capacidade, ou dedicação e investimento em estudo básico com qualidade superior a das escolas públicas como forma de sanar uma dívida histórica, mas que só acentua reações extremistas, dos contrários e favoráveis. Bom, eu não vejo o sistema de cotas como uma forma de pagar dívida alguma, mas também acho que a forma de entrada nas universidades (via vestibular) não é uma forma eficiente de se medir conhecimento. Prova disso é que nem sempre as maiores notas do vestibular são os melhores alunos do curso. O bom desempenho no ensino médio não significa bom desempenho no ensino superior, e em algumas universidades alunos cotistas apresentam melhor aproveitamento que alunos que entraram pela concorrência ampla. Em momento algum defendo o sistema de cotas como um fim em si mesmo, é necessário ampliar a qualidade do ensino básico, mas não somente via construção de escolas e aumento salarial de professores. É sabido um dos responsáveis pela péssima qualidade do ensino básico público são daqueles alunos que depredam o patrimônio, que desrespeitam o professor, que tumultuam as aulas.

É importante também ressaltar que até 2003 o Brasil seguia a recomendação do Banco Mundial para  a não criação de universidades públicas no Brasil. Essa medida parece esdrúxula, mas tem uma lógica que infelizmente não se compatibiliza com a realidade brasileira: o Brasil deveria investir em edução BÁSICA  de extrema qualidade e deixar a educação superior na mão da iniciativa privada. Até 2003 o Brasil tentou fazer isso descentralizando a educação básica para estados e municípios (que categoricamente não fizeram seu trabalho eficientemente) e não criaram mais universidades públicas. Ocorre que o mercado brasileiro tende ao oligopólio, o que fomentou a formação de mercenários conglomerados educacionais gigantescos de qualidade pífia. A partir de 2003 o governo federal passou a criar novas universidades federais, destacadamente: Universidade Federal de São João del Rei, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e a Universidade Federal do ABC, sendo que esta última figura como a melhor universidade brasileira em impacto normalizado e excelência em pesquisa de sua produção científica, segundo ranking Scimago.

O último capítulo,  A UTOPIA ANTROPOFÁGICA REVISITADA — Carta aberta de Lobão a Oswald de Andrade, é uma dos textos mais bonitos e geniais que eu li nos últimos tempos. A forma afetuosa e até carinhosa como Lobão trata seu adversário ideológico deveria servir como diretriz das relações humanas, reconhecendo o outro como indivíduo e entrando no jogo democrático para entrar em contato com novas experiências de pensamento, e o reconhecimento de diferentes formas de ver o mundo, sem desqualificar o indivíduo, mesmo discordando de todo seu discurso. Mais que uma proposta de desconstrução do Manifesto Antropófago, Lobão apresenta com humor e irreverência suas idéias, de forma a não ofender, mas rebater amigavelmente os discursos sacralizados e cultuados e disseminados por rebentos sem linguagem própria.

O livro todo é permeado por essa aura idiossincrática e bem humorada do artista, contudo não pode cair no ostracismo de nossa curta memória social, tampouco ser solenemente ignorado por uma patrulha ideológica dominante. A relevância do Manifesto de Lobão é necessária e pertinente como um levante do indivíduo contra o sufocamento pela coletividade.