Crônicas de um país sem sobrenome

Nota inicial: tá, eu sei, o assunto está na moda, e isso fará com que alguns leitores desavisados pensem: “ele só escreveu por causa disso”. Admito que andei relutando bastante para botar a minha opinião a respeito do que se passa na USP em dias atuais, fatos que dispensam novas explicações: todo mundo viu, todo mundo absorveu, e todo mundo opinou. Algumas coisas bastante absurdas foram ditas, outras opiniões foram até bem construídas, para um ou outro lado da história (e, admito, posso ter bebido dessas boas fontes ao elaborar meu raciocínio abaixo: não posso afirmar que estou totalmente banhado nos louros da originalidade…). Houve até quem associasse os alunos invasores da Reitoria com a Yakuza, FARCs e Máfia Russa (não viu? Eu garanto, vale muitas risadas: clique aqui). E foi depois delas, nossas lindas socialites (gostaria que, um dia, alguém pudesse me explicar satisfatoriamente o que é uma “socialite”), que tomei coragem pra escrever sobre tudo isso aqui.

Posso não ser da USP, e tenho total consciência que ninguém (repito: ninguém) tem mais poder de opinião que quem de fato está vivendo toda a situação, mas como um cara nascido e crescido na Grande São Paulo, ex-aluno de uma universidade estadual e um cientista humano (pronto, tá aí meu “quem sou eu” completo… enjoy!), acho que ao menos das socialites eu ganho em consistência de opinião. Acho que só por reconhecer que a opinião de quem está mais perto é sempre mais relevante, eu já passo na frente de uns 80% de todos os que deram seus pitacos sobre o caso USP, não é?

Feitas as considerações que queria antes de mostrar o que penso sobre toda essa balbúrdia, encerro esse mini-prefácio dando-te, leitor, o seguinte recado: eu não estou nem um pouco interessado sobre sua futura tentativa de me enquadrar em um ou outro lado da história. Quer me chamar de revoltado, maconheiro, burguesinho, ou quaisquer outros rótulos que pipocam por aí nas redes sociais quando o assunto é a USP? Fique a vontade, não estou nem aí. Apenas saiba que, caso eu lhe seja desagradável daqui pra frente, você tem o direito sempre democrático de comentar ali embaixo seu ponto de vista, de concordar ou discordar, ou de simplesmente não aparecer mais por esse espaço, se assim preferir. Um sorriso amarelo e um abraço pra você, querido!

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Pensar sobre a situação atual da Universidade Estadual de São Paulo, reconhecida com todos os méritos como uma das 200 maiores universidades mundiais, requer pensar um pouco no que ela, a Universidade Estadual de São Paulo, representa no contexto da cidade de São Paulo como um todo. Na verdade, quero deixar claro, a partir daqui, que quando digo “a USP”, refiro-me exclusivamente ao espaço ocupado pela entidade em questão na cidade. Aproveito e deixo claro também: guardadas as devidas proporções, essa reflexão cabe perfeitamente a quaisquer outras universidades estaduais e federais do Estado de São Paulo, dentre elas, a UNICAMP, de onde surgi no meio acadêmico, e de onde eu observei, ao longo de meus sete anos por lá, muitas semelhanças com o que acontece na USP hoje em dia. Guardemos as devidas proporções, novamente, ok?

A USP surgiu em São Paulo na década de 30, quando existia, ali, uma cidade ainda pungente no que diz respeito à vida social, população total e cultura. A São Paulo de oitenta anos atrás comportou bem um espaço, às margens de “um rio qualquer”, para uma universidade pomposa como aquela, com amplas áreas verdes, arquitetura arrojada para os padrões atuais, e claro, com uma produção científica promissora (promessa cumprida em dias atuais, indubitavelmente). Ali, neste terreno tão cheio de pompa, são formadas até hoje cabeças de maior renome no cenário nacional em diversos âmbitos da ciência e de outras funções sociais. Sacralizou-se o espaço da USP como um antro intocável, uma bolha de conhecimento e saber, onde nada entra, nada interfere, nada pode atrapalhar o paraíso do saber acadêmico.

Como é o espaço da USP

O problema, agora, é encaixar esse espaço tão fetichizado da USP, resgatado diretamente de um bizarro túnel do tempo, numa região tão nobre como a que pertence no contexto da cidade de São Paulo, oitenta anos depois um monstro urbano megalomaníaco de 16 milhões de pessoas, trânsito caótico, poluição, e com cada metro quadrado de terreno disputado no tapa pela especulação imobiliária e tantos outros órgãos sociais e econômicos… o “rio qualquer” ganhou uma das principais vias de escoamento de pessoas e cargas de toda a cidade, sempre entupida pelo trânsito infernal dos horários de pico e saídas de feriado prolongado. A região ganhou novos pólos econômicos de extrema importância e centralidade para a dinâmica paulistana e paulista (brasileira? Não, não é exagero).

Veio o grande choque, afinal: a USP não é uma bolha isolada da dinâmica caótica da urbanização de São Paulo. Ao contrário, como um espaço em teoria tão público como qualquer outro espaço de circulação da cidade, foi absorvida pelos fenômenos urbanos recorrentes: o ar da USP é tão poluído como o do resto da cidade, enfim. Vi recentemente uma pesquisa, divulgada na Folha de São Paulo, que mostra o espaço das ruas da USP usados como estacionamento de passageiros da CPTM, que deixam os carros nas ruas pacatas do campus para embarcar a pé na estação em frente à portaria principal da universidade (clique aqui e veja a reportagem). A USP tem suas próprias regras de circulação e comportamento, mas ainda assim é São Paulo, faz parte da cidade, nunca deixou de ser São Paulo, e hoje mais do que nunca está inserida na dinâmica da mesma!

Como (ainda) se vê o espaço da USP

A coisa se agrava quando constata-se que essa inserção da USP nessa urbanidade monstruosa de São Paulo inclui, também, certos aspectos sociais que seriam ainda mais indesejados num espaço tao intocável e sacralizado. É o caso da criminalidade, que sabidamente não assume para si as regras de uso e comportamento estipulados para a USP e para a sociedade como um todo, e que tem na USP terreno fértil para suas atividades. As grandes áreas verdes projetadas para o “antro do saber” de São Paulo, totalmente escuras e desoladas a noite, são perfeitos para a abordagem de um estudante desavisado vacilando com sua carteira, celular, carro. Além disso, e mais importante que tudo, o regimento interno não permite a entrada da polícia no campus, sem comunicado especial diretamente da Reitoria para ocasiões de grande desordem. Perfeito! Daí que vê-se, após o terrível assassinato de um estudante no bolsão de estacionamento da FEA, o estarte de todas as discussões relacionadas com as atuais atividades da PM no sagrado e profanado terreno da USP.

A partir deste ponto, caro leitor, você teve as fontes necessárias para entender (ou, ao contrário, “desentender”) tudo o que acontece na USP em dias atuais. Você viu os diferentes pontos de vista de estudantes e estudantes, pró e contra a PM no campus. Você viu a ação da PM de retirada dos estudantes do prédio da Reitoria. Você acreditou ou não nas palavras de um ou de outro sujeito entrevistado de cada lado da história. Você reproduziu seu velho discurso comunista, ou ao contrário, adotou seu “VEJA way of life” de ver as coisas (oh, dor) e comemorou com sua família as cenas da prisão dos 70 estudantes com narração exclusiva de William Bonner e comentários escrachados e exaltados deles, sempre deles.

Daqui, desse meu modesto ponto de vista, uso esse espaço para mostrar que há uma discussão, que em meu entender tange o cerne da questão, e que foi deixada de lado visto a tanto burburinho da imprensa escrita, falada, online, tentando (ou não) manter a imparcialidade dos fatos. Não há como pensar a presença ou não da PM no campus da USP sem entender que ele, o campus da USP, deixou há muito de ter apenas o uso oficial de espaço da ciência e do saber: a sociedade paulistana, legalmente ou não, reclama há muito o direito de uso do espaço da universidade pública que lhe é de direito, sempre foi! O usuário do espaço paga seus impostos, e por isso pode circular pela USP, pode parar seu carro nas avenidas esverdeadas da USP, “pode” bater carteira na USP, “pode” assaltar e matar na USP.

A propósito, eis o único uso que o citadino comum ainda pode fazer do campus da USP, não é? Se antes falamos do espaço da universidade (deixe-me frisar de novo, é sempre bom: USP, UNICAMP, UNESP, UNI…) há que se perguntar se a reivindicação deste espaço não é digna, visto o retorno que a universidade dá para a sociedade, para o cara que paga 40%, 50%, 60% de seus impostos para a manutenção daquele espaço e suas atividades. Ou foi só eu que nunca entendi por que, afinal, atividades sociais no campus são consideradas “extensão”, quando deveriam ser “obrigação”? Assunto para outro post, talvez…

Isto é São Paulo.

Isto, também.

E se o espaço da USP, assim, não é diferente de qualquer outro espaço da cidade de São Paulo, entendo que os que lá frequentam também deveriam ser tratados como igual. Oh, não, caro leitor, não estou defendendo a ação da polícia ao reprimir os invasores da Reitoria, independente do nome que você usou para eles, se maconheiros ou manifestantes. Ou estudantes, olha só! O que mostro aqui é a incoerência de uma instituição como a PM (o Ícaro foi brilhante quando falou sobre ela anteriormente por aqui), vinculada com o Governo Estadual que fetichiza o estudante e o espaço universitário e apreende os três “maconheiros”, enquanto deixa as atividades da região da Cracolândia (que, olha só, também é em São Paulo) fluirem normalmente, como se nada acontecesse. Ora, não é tudo São Paulo? Não são todos paulistanos? Do outro lado da história: o rótulo “Estudante” dá ao rotulado uma classe especial, uma entidade absoluta e intocável, fetichizada como o espaço o qual pertence? Se tudo ainda é São Paulo, por que uma morte na USP chama mais atenção que as dez, vinte, trinta mortes de Parelheiros todos os dias? Falamos aqui de status ou de dinheiro? Sabemos: o estudante das universidades públicas nacionais tem um perfil sócio-econômico muito além do brasileiro médio. E a pergunta ainda é a mesma: Brasil de quem?

Sinto se decepcionei aquele que entrou aqui esperando por um “a favor” ou “contra” isso e aquilo. Meu ponto de vista é limitado: não estou lá, não conheço toda a realidade do que acontece ali naquele espaço, e ao contrário da grande maioria, limito-me a falar do que sei. E o que sei, afinal, é que, se há tanta divergência de opiniões a respeito da permanência ou não da PM na USP, se há tanta gente olhando pra aquilo e rotulando tudo como “antro de maconheiros”, ou “casa do estudante”, ou “espaço do saber”, eu prefiro rotular como “São Paulo”, e levanto a bola de que, mais do que nunca, é necessário re-discutir o espaço da universidade pública no Brasil (e agora uso “espaço” com o sentido de “lugar” e também com o sentido de “função social”), pra que se perca essas idéias tão ainda presentes de sacralização da universidade, lugar onde nada é permitido (nem as pessoas), e que pode funcionar da forma como bem entender, sem dar o merecido retorno à sociedade que a financia.

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PS: Pois é, você ainda está esperando as lições tiradas do caso USP, como eu disse no título do post. Confesso que não pensei muito bem sobre isso, mas de cara, posso apontar algumas delas, vamos lá:

  • Cuidado: se você ou seu grupo está na mídia, todos podem falar o que bem entenderem sobre você, independente de te conhecerem ou conhecerem suas reivindicações.
  • Ao se manifestar sobre algum problema, certifique-se de que quem te assiste pela TV consiga entender o que você quer.
  • Talvez, o passo anterior possa ser resolvido com a prática de manifestar-se com mais frequência, sem deixar acumular trocentas causas no mesmo movimento.
  • “Maconheiro” deixou de ser um nome para o usuário da erva em questão para ser um xingamento, uma ofensa terrível no Brasil, especialmente se você usa um moleton da GAP.
  • A propósito, surpreenda-se: moletom da GAP é entendido como sinal de status social e financeiro!
  • Ao que parece, o cidadão comum entende que sua capacidade de entendimento e raciocínio sobre as questões sociais é inversamente proporcional à sua conta bancária. No caso das socialites, eu admito que concordo…
  • NUNCA, JAMAIS, DE FORMA ALGUMA despreze a mídia burguesa e manipuladora chamando-a de “mídia burguesa e manipuladora”. Lembre-se que é ela, a mídia burguesa e manipuladora, que ainda faz a cabeça do brasileiro, e é ela que vai fazer com que a sociedade inteira te ofenda ostensivamente no Jornal Nacional e, obviamente, despreze você e suas idéias até sua desejada morte lenta e dolorosa!
  • Sim, ainda é possível se surpreender com a postura social de amigos, familiares, parceiros, colegas, e o quanto estas cabeças podem ser maiores / menores do que você imaginava.
  • Sim, o brasileiro ainda é um especialista em reprodução de discursos alheios.

PS(2): Você deve estar se perguntando porque deixei para escrever isso quando a situação já está controlada. Na verdade, nada ainda foi resolvido, caro leitor: acontece que os abutres da mídia burguesa e manipuladora viram carne fresca na captura do Nem da Rocinha e correram para o Rio de Janeiro. Mas não se engane: as discussões dentro da USP e das demais universidades estaduais estão mais pungentes do que nunca!

PS(3): na verdade, a demora em postar sobre esse assunto veio de uma longa e profunda maturação de minhas idéias, sozinho e/ou com amigos, em rodas de bar ou redes sociais. Precisava de um tempo pra, simultaneamente, colocar as idéias no lugar e escrever com a densidade necessária e fugir dos holofotes dos pseudo-urubus da “mídia Facebook”… tá, não engano ninguém, foi falta de tempo mesmo!

PS(4): Falando na Rocinha, relembro o que escrevi na época da invasão do Morro do Alemão. Vale a mesmíssima coisa, caso tenha a curiosidade: clique aqui e troque mentalmente o “Morro do Alemão” por “Rocinha”, ok?

PS(5): Momento “propaganda gratuita” – começou a Campanha Papai Noel dos Correios, em que você pode adotar uma carta de uma criança carente destinada ao Papai Noel em alguma agência dos Correios e realizar o desejo dela. Vale a pena, e muito: clique na figura abaixo e conheça melhor esse bonito trabalho.

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