Crônicas de um país sem sobrenome

Carinha da classe média, independente se média alta ou baixa, crescendo nesse típico mundozinho pertencente a seu “status social”. Ensino médio completo, desses que se tem nas escolas públicas do Brasil, que como já discutimos, não forma pensamento crítico, só empurra o cara à formatura. Valores sociais completamente distorcidos levados desde berço, recebendo uma educação de seus pais repleta de pensamentos torpes sobre raça, credo, sexualidade. Sim, nós somos racistas, homofóbicos, católicos demais. Mas, principalmente, ouvindo desde pequenininho, pela amaldiçoada TV formadora de opinião ou pelos mais velhos, as velhas máximas pseudo-sociológicas. “Cuidado ao andar por ruas escuras”. “Muito cuidado com as drogas e com os drogados, gente do bem não usa, menino”. “Favela é lugar de bandido, gente que mata e rouba por prazer, que destrói a vida dos outros”. Associação direta: ação estatal e legalidade é sinônimo de retidão social, e tudo o que foge disso é mal, perigoso, amedrontador. Sabemos, um pouquinho mais de esclarecimento desfaz qualquer pensamento distorcido como esse, mas também sabemos: vivemos, infelizmente, num mundo em que a maioria tem e dissemina esses pensamentos distorcidos.

"Papai, papai, somos da nova classe média e estamos enfim numa rua segura. Desperdiça água em mim?"

Pegue esse cara e dê a ele um certo “poder de alteração das coisas” que, menino da classe média, ele nunca teve. Dê a ele uma arma, uma farda, e o poder de usar sua autoridade quando “julgar pertinente de acordo com sua preparação”. Leia-se: essa “preparação” é muito mais sobre “técnicas de combate” (ou algo semelhante, sei lá), que para entendimento das formas como a sociedade de fato funciona. E o cara que cresceu temendo o mundo e encarando qualquer pessoa diferente dele como potencial inimigo, individual ou social, agora tem uma carta branca, dada pelo Estado que sempre foi para ele a estância maior de respeito e direção, para “estabelecer a ordem”…

Você se lembra desse caso, eu sei, mas vale a pena ver de novo. Procure ao menos dessa vez colocar-se na pele do policial bonachão prestes a ganhar uma ponte de safena…

É fácil entender, caro leitor, a atual crise da polícia no Brasil. Casos como a invasão da Reitoria da USP, a desocupação da Cracolândia, e mais recentemente o caso da Favela do Pinheirinho em São José dos Campos e o show da Rita Lee em Aracaju, empurram ladeira abaixo a imagem dessa corporação tão secular na sociedade brasileira. Claro, com uma certa forcinha básica das redes sociais e do engajamento das classes médias-altas, frequentadoras dos sacralizados núcleos de formação crítica nacional, eis que entre um escândalo e outro, desde meados do ano passado a Polícia Militar, especialmente no estado de São Paulo, tem perdido rapidamente seu prestígio como órgão indispensável na sociedade atual. Sim, eu sei, todo aquele papo de “ordens superiores de um estado fascista” e lero-lero, e algum dia eu até posso jogar um post aqui sobre isso, mas o “estado fascista”, até que se prove o contrário, determinou as ordens mas não os modos: a violência vem dali mesmo.

Explicável? Totalmente! Dar uma arma para aquele cara que conversamos lá em cima é pedir para que ela seja usada. É só notar, por exemplo, que um em cada cinco assassinatos cometidos na cidade de São Paulo em 2011 foi por um policial, fardado ou a paisana, segundo dados da Corregedoria da Polícia Militar e levantamento da Folha de São Paulo. E que, obviamente, os casos de “resistência seguida de morte” é maioria, mas não correspondem de modo algum à totalidade desses óbitos.

A corporação que deveria cuidar da segurança social, na verdade é um dos maiores agentes de perigo de vida. Se por um lado já não é simples enxergar no transgressor abatido pela bala do 38 do homem fardado um alguém sem futuro, um alguém que viu na criminalidade a forma mais fácil (se não a única) de sobrevivência; mais difícil ainda é perceber que o próprio homem fardado, portador do 38 que abateu o transgressor, é também um cidadão típico de nossa sociedade, com seus receios e valores herdados, que é esfolado pelos impostos todos os dias e tem esposa e filhos e desejos de futebol nos finais de semana. Exatamente como você, cheio de medo e paranóias sociais, mas com um revólver na mão. Você consegue afirmar com firmeza que, no lugar dele, agiria diferente?

Alguém como você, como eu. Quem nunca quis encoxar uma vaca colorida ao encontrar uma na rua? (clique na figura para conhecer o caso)

Caros, o buraco e bem mais embaixo. O comportamento individual de cada um dos membros dessa corporação reflete com exatidão os valores que cada um deles ganhou ao longo da formação de nossa sociedade. E não é o caso de uma família desregrada, ou preconceituosa, caro leitor: a sociedade brasileira como um todo é exatamente assim, preconceituosa, paranóica e altamente corruptível desde sua concepção. É claro que uma instituição que em tese zela pelo bem-estar social teria obrigatoriamente que se desfazer desses ônus históricos, mas será tão simples? Pense: você conseguiria racionalizar e se desvencilhar de algo que seus pais lhe incutiram como valor de caráter?

Eu acredito na polícia? Sim, acredito. Acredito mais nela do que em um suposto pseudo-poder de autorregulação de um comportamento social aceitável para o indivíduo. Acredito que ela é um (____) necessário – complete com “bem” ou “mal” da forma que melhor lhe convir. Acredito que a maior parte dos policiais passam seus 30, 40 anos de carreira realizando seu trabalho, se não da melhor forma, mas da melhor forma possível de acordo com suas condições (que, sabemos, assim como qualquer repartição pública deve ter lá suas pendengas).  E é por isso que, antes de demonizar a corporação, devemos antes entender que ela é formada por “gente como a gente” (oh, que coisa mais Gugu Liberato, desculpem!), e por vê-la como um espelho dos nossos próprios comportamentos, e medos, e preconceitos, e pseudo-ameaças de seja lá o que for.

Uma polícia mais justa viria apenas com uma sociedade mais justa? Não é bem assim. Seria hipócrita se desse, aqui, detalhes do processo de formação militar de um policial brasileiro: confesso que não sei, mas não preciso saber para ver que é evidente que uma maior preparação e um maior pensamento social é necessário no processo de formação do policial militar. Mas eu volto a provocar-te, leitor: pense, reflita profundamente, lembre-se de cada piadinha e cada comentário doutrinador de sua mãe. Você seria um policial diferente?

Se quiser, comenta aí.

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PS: A ONG Cursinho Professor Chico Poço, que faz um cursinho pré-vestibular comunitário para pessoas de baixo poder aquisitivo em Jundiaí, começou o Projeto “Adote um Aluno”, onde você pode colaborar para a redução das mensalidades de seus alunos ao longo do ano. Nem preciso dizer o tamanho do meu xodó por esse trabalho, e por isso, te convido a conhecer o trabalho da ONG e a clicar na figura aí embaixo para se inscrever. Eu sei que você é dessa mesma classe média que conversamos anteriormente, e como eu também sou, sei que você consegue doar R$30 por mês para uma causa tão nobre.

PS(2): faz uns meses, estou tentando assistir um documentário sobre a Zona Sul de São Paulo, chamado “A Ponte”, de Roberto Oliveira e João Wainer. Ou o sono me pega (eu e essa mania de se pendurar no computador de madrugada), ou não tenho tempo de ver inteiro, mas entre ver pedacinho hoje e amanhã e esperar carregar no outro dia até o ponto onde parei (e assim perder a paciência), estou realmente curtindo muito, recomendo! Clique aqui para ir ao documentário no Vimeo.

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